Cotidiano na pandemia
O inusitado das experiências e cenários que caracterizam os tempos de pandemia é ilustrado pela forma como chega o convite. Meio dia de um sábado, estou no piano testando o som do celular e do notebook para escolher a melhor forma de participar de um sarau pelo Zoom, algumas horas mais tarde. Mensagens de Whatsapp aparecem na tela e deixo para ler depois, mas uma delas me preocupa. Um áudio de quase 3 minutos da Margela. É minha orientanda no estágio de clínica, pode ser algum problema gerado por estes tempos estranhos de atendimentos online. Escuto a mensagem e relaxo, aliviada e divertida. Se trata apenas de uma solicitação “bem simples”, segundo ela: escrever para o blog do NPOT um texto que, evidentemente, deve ser produzido com urgência e enviado acompanhado por um vídeo tocando com minha filha e uma foto para ilustrar a publicação. Devo a honra do convite ao cargo de coordenadora do curso de Psicologia da Faculdade São Francisco de Assis, para o qual, paradoxalmente, minhas habilidades de pianista nunca foram consideradas requisito. Mas são solicitadas neste momento ímpar, em que os múltiplos lugares que ocupamos em diferentes cenários sociais parecem se misturar e nos convocar a estar sempre presentes, apesar do isolamento social.
Na mesa a meu lado, a despeito do adiantado da hora, ainda o café da manhã (rabanadas, boa forma de aproveitar o pão dormido em tempos de dificuldades de ir ao supermercado, verdadeira aventura envolvendo máscaras, álcool gel e uma logística de improvável garantia de eficiência na higienização completa posterior dos produtos). Pela frente um sarau digital e, é claro, elaborar as provas, que se aproximam perigosamente e representarão um desafio inédito para professores e alunos. Não poderemos usar as técnicas habituais de controle para evitar a cola, o jeito vai ser inventar atividades que desafiem nossos psicólogos em formação a exercitar suas habilidades e demonstrar os conhecimentos que construíram nessas semanas de ensino à distância, aulas e reuniões improvisadas pelos mais diversos meios, a maioria dos quais completamente desconhecido por mim até então: Zoom, Hangouts meet e, o que ainda me parece mais democrático (apesar de absolutamente prosaico), o Whatsapp.
Ultimamente preparo aulas enquanto cozinho e lavo roupa, troco com meus alunos receitas de canjica e atendo pacientes online preocupada em garantir o sigilo, em um setting que acontece na intersecção de dois espaços domésticos. Converso com estudantes sobre os casos clínicos do Freud enquanto minha pitoca assiste vídeos, aparentemente distraída a meu lado e, alguns dias depois, ela discursa sobre o Homem dos Ratos e o Homem dos Lobos. Dá pitacos sobre o Totem e Tabu. Me pergunto como vai elaborar essas experiências todas. Aliás, como todas as crianças farão isso, desafio que aparece em suas falas e referências múltiplas à suspensão do tempo e à ameaça do “bichinho” que interrompeu suas existências até então razoavelmente previsíveis, exigindo afastamento da escola, professores, amigos, avós.
Vivo, como todos a minha volta, tempos de sobreviver. E tentar entender. Buscar nas experiências singulares referências para elaborar o que estamos vivendo. Na falta delas, procurar na história de outros. Histórias extremas. Penso em Anne Frank, encerrada no pequeno apartamento com sua família durante a Segunda Guerra Mundial. Quando visitei o local, me perguntei como seria possível… Recordo cenas de livros, filmes e documentários sobre os Sobreviventes dos Andes, presos em um lugar remoto e gelado da Cordilheira dos Andes após um desastre aéreo. Me lembro também das pessoas com quem conversei sobre a experiência ímpar de morar na base de um vulcão que há alguns anos entrou em erupção, no Chile. Acordando todas as manhãs e se perguntando se haverá tremores de terra em número suficiente para, de fato, se preocuparem. E vendo diariamente, ao deixarem suas casas para as atividades rotineiras, explicações sobre as rotas de evacuação da região em caso de necessidade e alarmes de tsunami espalhados pelas estradas. Retomo a leitura da obra da Chimamanda Ngozi Adichie sobre Biafra e a tentativa de separação da Nigéria. O horror da guerra, a morte, a fome, o luto pelo que se vivera até então. Muitos outros exemplos me vêm também, o tempo todo…
O que fez com que alguns conseguissem, ao longo da história, apesar de condições desumanas, lutar tão bravamente por suas vidas? Como se recalca tal dose de risco nestas situações? E como nós, neste momento, continuamos nos levantando todos os dias sabendo que nossas vidas estão ameaçadas por um vírus para o qual ainda não existem vacinas ou tratamentos efetivos?
Cartesianamente, busco na ciência e na literatura respostas e leio o “Mal estar na Civilização”, obra magistral em que Freud aponta as fontes inevitáveis de desprazer para o ser humano em sua relação com a cultura. Esse vírus que ameaça a todos nós, e nem mesmo um ser vivo pode ser considerado, parece encarnar, de forma quase absoluta, a potência da força da natureza. Denuncia a fragilidade do nosso corpo e, de quebra, nos confronta com o inevitável desgaste na relação com o outro, com quem a convivência nos diferentes cenários do isolamento certamente exerce seus desafios.
Mas o texto freudiano, embora atual em suas proposições, também não oferece respostas suficientes. O fato é que nenhuma vivência pessoal, teoria ou leitura nos preparou para o que estamos experimentando. Cada dia demanda invenções sobre como viver e trabalhar por semanas a fio no mesmo espaço, com uma inusitada mistura de lazer, atividades ocupacionais e domésticas, e busca de formas de recalcar o medo e brindar à vida.
Nessa busca, embora vivendo um momento com desafios comuns, contamos com nossos recursos singulares. Que possamos construir e retomar práticas que nos ajudem. Cozinhar, escrever, meditar, ler, conversar, rezar, trocar sobre nossas experiências. Aquilo que é importante para cada um de nós. O amor, a arte. Muito especialmente para mim, a música. Das Metamorphosis eruditas de Philip Glass às brincadeiras com canções de Hermes Aquino (minha filha ameaça romper a quarentena se eu filmar), passando pelas dicas preciosas do Pato Fu em Sobre o Tempo e do Walter Franco em Coração Tranquilo, que cantamos em uma apresentação no ano passado (que agora parece ter sido em outra vida) e na poesia de Horizontes, que soa em mim quando vejo o pôr do sol no final da tarde e me lembro que mais um dia se passou e outros virão. É essa que escolhemos cantar no sarau deste mês. Brincamos com arranjos, inventamos letras e resolvemos, finalmente, apresentar a versão original, com menção aos anos evocados então. Que apesar do mau tempo, possamos lembrar que novos virão. Novos anos, novos tempos, novos horizontes…
Abertura do Blog em alto nível com as reflexões do cotidiano propostas pela Professora Ana Paula e esta música belíssima tocada por ela e cantada pela talentosa filhota.
Super parabéns aos idealizadores do Blog.
Sucesso!
Abraço, Prof. Letícia
Parabéns, professora! Texto maravilhoso! E a dupla no canto e piano, super talentosa!!
Maravilho texto Ana, muito sensível e reflexivo! Obrigada por nos convocar a refletir sobre novos horizontes! Parabéns pelo blog, Márcia e equipe, muito pertinente o lançamento neste momento! Vou seguir acompanhando tudinho!
Lindo demais! Amei 🙂
Adorei profe!! Linda música
Muito bacana!!! Parabéns !!!
Excelente reflexão: alegria pura contar com ela e revrr vcs 2 cantando justo sobre ” o tempo amigo’. . Abraço com orgulho e muito carinho.
Oi Ana Paula!! minha querida colega e ex-professora!!
Que bela reflexão e ainda mais belo teu recital, junto com a filhota!!
Muito legal esse espaço de elaborações, reflexões e reinvenções.
Abraços
Maira
Que liiiindooooo o seu texto e vcs cantando!
Adoramos !!! Tudo muito lindo!!!
Muito legal a reflexão, música e vcs cantando!!! Parabéns. Continuarei acompanhando
Parabéns! Adoramos!
Que belo e reflexivo relato professora Ana! Linda iniciativa professora Márcia e colegas. Fico muito feliz em acompanhar o blog e as maravilhosas postagens.
Beijos (de longe) com sabor de saudades.
Dienifer.
Muito bom! ❤