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Saúde mental do trabalhador em tempos de COVID-19: Atuação na linha de frente

Júlia Vieira Lipert Pazzim
Psicóloga
Formada pela Faculdade São Francisco de Assis
Especialista em Saúde da Criança/ UFRGS
Mestranda em Ciências da Saúde: Ginecologia e Obstetrícia/ UFRGS

Vivemos hoje uma situação mundial até então desconhecida por grande parte da população. A pandemia de coronavírus (COVID-19) caracterizada pela manifestação de infecções assintomáticas e quadros clínicos graves pode interferir diretamente na vida de pessoas comuns e profissionais de saúde¹.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS)², cerca de 80% dos pacientes contaminados com COVID-19 podem não apresentar sintomas. No entanto, 20% da amostra mundial podem requerer atendimento hospitalar e 5% podem necessitar de suporte de alta tecnologia para sobreviver (suporte ventilatório).

Neste cenário, a sociedade é acometida por diversas notícias acerca da disseminação do vírus. Informações duvidosas ou até mesmo falsas sobre os fatores associados à transmissão da doença, alcance geográfico e número de infectados levam à insegurança e ao medo da população³.

Os profissionais de saúde que atuam na linha de frente, no combate a pandemia do novo coronavírus, têm enfrentado diversas dificuldades. O esgotamento emocional e físico associado a sobrecarga de trabalho corrobora para a vulnerabilidade psíquica apresentada pelos trabalhadores.

Para compreender as repercussões psicológicas de uma pandemia, é necessário considerar a manifestação de sentimentos de medo, raiva, frustração e impotência apresentada pelos profissionais responsáveis direto pelo cuidado do paciente com COVID-194. É importante ressaltar, que historicamente às ciências médicas estiveram associadas ao conceito de cura. Pereira (2015), nos lembra ao dialogar sobre a Psicanálise e medicina, que ambas as disciplinas já estiveram bastante distantes ao olhar para o sujeito. O próprio Freud encontrou dificuldades em situar a Psicanálise no campo científico,uma vez que considera conteúdos inapreensíveis do ponto de vista da ciência positivista, não excluindo o sujeito do inconsciente e a produção de sintomas orgânicos como resposta à atividade inconsciente.

A medicina, por sua vez, tem como foco a cura do adoecimento sem a urgência de compreender os sintomas manifestados pelo outro. Ao excluir o fator “sujeito” da cena resta ao mundo contemporâneo o apelo à medicalização e extinção do sofrimento físico e psíquico. De acordo com Caguilhem (2005)5, o profissional médico foi moldado para olhar o corpo como objeto, uma vez que a medicina é uma disciplina estritamente normativa, biológica e orgânica.

O discurso científico carrega nas entrelinhas o dever, ou até mesmo obrigatoriedade de responder ao outro aquilo que o acomete. As respostas são inúmeras, no entanto, quando a realidade é atravessada por incertezas e angústias, e o real[1] se apresenta, as conclusões podem ser insuficientes.

Neste sentido, o psicólogo (a) pode atuar junto à equipe multiprofissional, auxiliando no acolhimento e escuta das demandas emocionais manifestas. Os processos de comunicação podem ser prejudicados, o que exigirá do profissional de saúde mental a articulação de técnicas e estratégias para o cuidado com a saúde do trabalhador. A experiência clínica associada ao trabalho multiprofissional sugere ao psicólogo (a) a construção de espaços psíquicos, caracterizados pela capacidade de escuta e empatia com o sofrimento apresentado pela equipe de saúde.

Vale ressaltar, que muitas vezes o próprio psicólogo (a) poderá ser alvo de sentimentos de angústia e raiva projetados pelo grupo. Entretanto, o papel de facilitador no processo de comunicação, possibilita a este profissional ferramentas para a reflexão e desenvolvimento de estratégias maduras para o enfrentamento da situação de crise.

Através da fala, a equipe de saúde poderá expressar os medos e temores frente à pandemia de COVID-19, propiciando assim, a elaboração de conteúdos que ainda não foram “digeridos” pelo aparelho psíquico.

A pandemia do novo coronavírus poderá também despertar nos profissionais de saúde, reações emocionais consideradas negativas. Estudos recentes indicam que é esperado que os profissionais se sintam sobrecarregados e sob pressão, no entanto, é importante avaliar que o estresse deste momento, não é sinônimo de fraqueza ou incompetência profissional 6,7,8.

Outro estudo recente publicado na European Society of Cardiology (2020)9mostrou que os profissionais de saúde têm enfrentado o aumento da sobrecarga de trabalho, além de temores relacionados ao medo de contágio por eles e também por seus familiares.

Os mesmos autores referem que devido a sobrecarga dos serviços de saúde assistenciais, muitas famílias acabam não conseguindo visitar seus entes queridos. Quando ocorre o óbito, cabe a estes profissionais comunicar aos familiares a sua perda, o que tem sido um fator produtor de sentimentos de culpa e fracasso9.

Além disso, funcionários que estão classificados dentro do grupo de risco, devido a condições de saúde subjacentes, idade avançada e gravidez são afastados de suas atividades. Maunder et al. (2003)8 referem que estes trabalhadores podem também experimentar sentimento de frustração e estresse elevado.

De acordo com Williams et al. (2019)10, nem todos os profissionais de saúde irão vivenciar as sensações de angústia e medo frente a situações de emergência e desastre. É importante que a equipe compreenda a variabilidade de respostas emocionais e que estas irão se modificar ao longo da crise.

É relevante que os profissionais de saúde mental estejam atentos para os efeitos psicológicos produzidos pelo novo coronavírus. Diversos estudos têm apontado para os efeitos psíquicos da pandemia associados à Síndrome de Burnout, fadiga, crises de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)11, 12,13.

Falar de saúde mental do trabalhador frente a pandemia de COVID-19 é um grande desafio. Apesar de todo o arsenal técnico e teórico que o psicólogo (a) carrega em sua bagagem profissional, o sofrimento segue sendo algo muito singular e subjetivo. O desenvolvimento de estratégias e práticas de cuidado que minimizem os efeitos da situação traumática vivenciada por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais, entre outros, poderão auxiliar em seu enfrentamento.

Referências

  1. Ministério da Saúde (BR), Painel Coronavírus. Brasília (DF). [publicação online]; 2020. [acesso em 10 mar 2020]. Disponível em https://covid.saude.gov.br/.
  2. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Mental Health and Psychosocial Considerations During COVID-19 Outbreak. Disponível em : . Acesso em 19/03/2020.
  3. Ornell F, Schch J, Sordi A, Kessler F. “Medo pandêmico” e COVID-19: ônus e estratégias para a saúde mental. Revista Brasileira de Psiquiatria. 2020; 00(00). doi:10.1590/1516-4446-2020-0008
  4. Tucci V, Moukaddam N, Meadows J, Shah S, Galwankar SC, Kapur GB. A praga esquecida: manifestações psiquiátricas de ebola, zika e doenças infecciosas emergentes. J Glob Infect Dis. 2017; 9: 151-6.
  5. Canguilhem G. Le normal et el pathologique, Presses Universitaires de France – PUF, Paris, 2005 (1998).
  6. Costa B. A SAÚDE MENTAL DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE EM MEIO À PANDEMIA COVID-19. Nota Informativa, 2020. Disponível em http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/03/Nota-Informativa-A-Sa%C3%BAde-Mental-e-a-Pandemia-de-COVID-19-impactos-e-orienta%C3%A7%C3%B5es-para-profissionais-de-sa%C3%BAde.pdf
  7. DAMIR HUREMOVIĆ. Psychiatry of Pandemics: A Mental Health Response to Infection Outbreak. Springer Nature Switzerland AG 2019.
  8. Maunder R, Hunter J, Vincent L, et al. The immediate psychological and occupational impact of the 2003 SARS outbreak in a teaching hospital. CMAJ: Canadian Medical Association journal ¼ journal de l’Association medicale canadienne 2003; 168: 1245–1251. https://www. ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12743065 (accessed 31 March 2020).
  9. Walton M, Murray E, Christian M. Mental health care for medical staff and affiliated healthcare workers during the COVID-19 pandemic. European Society of Cardiology 2020; 0(0):1-7.
  10. Williams R, Bisson J and Kemp V. Principles for responding to people’s psychosocial and mental health needs after disasters. https://www.apothecaries.org/wp-content/ uploads/2019/02/OP94.pdf
  11. Spencer SA, Nolan JP, Osborn M, et al. The presence of psychological trauma symptoms in resuscitation providers and an exploration of debriefing practices. Resuscitation 2019; 142: 175–181.
  12. Malta M, Rimoin AW, Strathdee SA. The coronavirus 2019-nCoV epidemic: is hindsight 20/20? EClinicalMedicine. 2020;20:100289.
  13. Shigemura J, Ursano RJ, Morganstein JC, Kurosawa M, Benedek DM. Public responses to the novel 2019 coronavirus (2019-nCoV) in Japan: mental health consequences and target populations Psychiatry Clin Neurosci; 2020 Feb 8. doi: 10.1111/pcn.12988. [Epub ahead of print].

1 A estrutura trinitária do real, imaginário e simbólico foi apresentada por Lacan nos seminários 19 e 20 (2012; 1985) para tratar da constituição do sujeito.  O simbólico é uma articulação combinatória de significantes; o imaginário é tudo o que se pensa e se percebe dos objetos e das coisas do mundo; o real é a dimensão impossível, pois tudo o que sabemos dele está posto no imaginário.

3 thoughts on “Saúde mental do trabalhador em tempos de COVID-19: Atuação na linha de frente

  1. Excelente texto! Reflexões muito pertinentes e contemporâneas!

  2. Parabéns colega. Orando para os profissionais que estão na linha de frente permaneçam fortes … #juntossomosmais fortes#

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