Saúde mental do trabalhador em tempos de COVID-19: Atuação na linha de frente
Vivemos hoje uma situação mundial até então desconhecida por grande parte da população. A pandemia de coronavírus (COVID-19) caracterizada pela manifestação de infecções assintomáticas e quadros clínicos graves pode interferir diretamente na vida de pessoas comuns e profissionais de saúde¹.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS)², cerca de 80% dos pacientes contaminados com COVID-19 podem não apresentar sintomas. No entanto, 20% da amostra mundial podem requerer atendimento hospitalar e 5% podem necessitar de suporte de alta tecnologia para sobreviver (suporte ventilatório).
Neste cenário, a sociedade é acometida por diversas notícias acerca da disseminação do vírus. Informações duvidosas ou até mesmo falsas sobre os fatores associados à transmissão da doença, alcance geográfico e número de infectados levam à insegurança e ao medo da população³.
Os profissionais de saúde que atuam na linha de frente, no combate a pandemia do novo coronavírus, têm enfrentado diversas dificuldades. O esgotamento emocional e físico associado a sobrecarga de trabalho corrobora para a vulnerabilidade psíquica apresentada pelos trabalhadores.
Para compreender as repercussões psicológicas de uma pandemia, é necessário considerar a manifestação de sentimentos de medo, raiva, frustração e impotência apresentada pelos profissionais responsáveis direto pelo cuidado do paciente com COVID-194. É importante ressaltar, que historicamente às ciências médicas estiveram associadas ao conceito de cura. Pereira (2015), nos lembra ao dialogar sobre a Psicanálise e medicina, que ambas as disciplinas já estiveram bastante distantes ao olhar para o sujeito. O próprio Freud encontrou dificuldades em situar a Psicanálise no campo científico,uma vez que considera conteúdos inapreensíveis do ponto de vista da ciência positivista, não excluindo o sujeito do inconsciente e a produção de sintomas orgânicos como resposta à atividade inconsciente.
A medicina, por sua vez, tem como foco a cura do adoecimento sem a urgência de compreender os sintomas manifestados pelo outro. Ao excluir o fator “sujeito” da cena resta ao mundo contemporâneo o apelo à medicalização e extinção do sofrimento físico e psíquico. De acordo com Caguilhem (2005)5, o profissional médico foi moldado para olhar o corpo como objeto, uma vez que a medicina é uma disciplina estritamente normativa, biológica e orgânica.
O discurso científico carrega nas entrelinhas o dever, ou até mesmo obrigatoriedade de responder ao outro aquilo que o acomete. As respostas são inúmeras, no entanto, quando a realidade é atravessada por incertezas e angústias, e o real[1] se apresenta, as conclusões podem ser insuficientes.
Neste sentido, o psicólogo (a) pode atuar junto à equipe multiprofissional, auxiliando no acolhimento e escuta das demandas emocionais manifestas. Os processos de comunicação podem ser prejudicados, o que exigirá do profissional de saúde mental a articulação de técnicas e estratégias para o cuidado com a saúde do trabalhador. A experiência clínica associada ao trabalho multiprofissional sugere ao psicólogo (a) a construção de espaços psíquicos, caracterizados pela capacidade de escuta e empatia com o sofrimento apresentado pela equipe de saúde.
Vale ressaltar, que muitas vezes o próprio psicólogo (a) poderá ser alvo de sentimentos de angústia e raiva projetados pelo grupo. Entretanto, o papel de facilitador no processo de comunicação, possibilita a este profissional ferramentas para a reflexão e desenvolvimento de estratégias maduras para o enfrentamento da situação de crise.
Através da fala, a equipe de saúde poderá expressar os medos e temores frente à pandemia de COVID-19, propiciando assim, a elaboração de conteúdos que ainda não foram “digeridos” pelo aparelho psíquico.
A pandemia do novo coronavírus poderá também despertar nos profissionais de saúde, reações emocionais consideradas negativas. Estudos recentes indicam que é esperado que os profissionais se sintam sobrecarregados e sob pressão, no entanto, é importante avaliar que o estresse deste momento, não é sinônimo de fraqueza ou incompetência profissional 6,7,8.
Outro estudo recente publicado na European Society of Cardiology (2020)9mostrou que os profissionais de saúde têm enfrentado o aumento da sobrecarga de trabalho, além de temores relacionados ao medo de contágio por eles e também por seus familiares.
Os mesmos autores referem que devido a sobrecarga dos serviços de saúde assistenciais, muitas famílias acabam não conseguindo visitar seus entes queridos. Quando ocorre o óbito, cabe a estes profissionais comunicar aos familiares a sua perda, o que tem sido um fator produtor de sentimentos de culpa e fracasso9.
Além disso, funcionários que estão classificados dentro do grupo de risco, devido a condições de saúde subjacentes, idade avançada e gravidez são afastados de suas atividades. Maunder et al. (2003)8 referem que estes trabalhadores podem também experimentar sentimento de frustração e estresse elevado.
De acordo com Williams et al. (2019)10, nem todos os profissionais de saúde irão vivenciar as sensações de angústia e medo frente a situações de emergência e desastre. É importante que a equipe compreenda a variabilidade de respostas emocionais e que estas irão se modificar ao longo da crise.
É relevante que os profissionais de saúde mental estejam atentos para os efeitos psicológicos produzidos pelo novo coronavírus. Diversos estudos têm apontado para os efeitos psíquicos da pandemia associados à Síndrome de Burnout, fadiga, crises de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)11, 12,13.
Falar de saúde mental do trabalhador frente a pandemia de COVID-19 é um grande desafio. Apesar de todo o arsenal técnico e teórico que o psicólogo (a) carrega em sua bagagem profissional, o sofrimento segue sendo algo muito singular e subjetivo. O desenvolvimento de estratégias e práticas de cuidado que minimizem os efeitos da situação traumática vivenciada por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais, entre outros, poderão auxiliar em seu enfrentamento.
Referências
- Ministério da Saúde (BR), Painel Coronavírus. Brasília (DF). [publicação online]; 2020. [acesso em 10 mar 2020]. Disponível em https://covid.saude.gov.br/.
- WORLD HEALTH ORGANIZATION. Mental Health and Psychosocial Considerations During COVID-19 Outbreak. Disponível em : . Acesso em 19/03/2020.
- Ornell F, Schch J, Sordi A, Kessler F. “Medo pandêmico” e COVID-19: ônus e estratégias para a saúde mental. Revista Brasileira de Psiquiatria. 2020; 00(00). doi:10.1590/1516-4446-2020-0008
- Tucci V, Moukaddam N, Meadows J, Shah S, Galwankar SC, Kapur GB. A praga esquecida: manifestações psiquiátricas de ebola, zika e doenças infecciosas emergentes. J Glob Infect Dis. 2017; 9: 151-6.
- Canguilhem G. Le normal et el pathologique, Presses Universitaires de France – PUF, Paris, 2005 (1998).
- Costa B. A SAÚDE MENTAL DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE EM MEIO À PANDEMIA COVID-19. Nota Informativa, 2020. Disponível em http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2018/03/Nota-Informativa-A-Sa%C3%BAde-Mental-e-a-Pandemia-de-COVID-19-impactos-e-orienta%C3%A7%C3%B5es-para-profissionais-de-sa%C3%BAde.pdf
- DAMIR HUREMOVIĆ. Psychiatry of Pandemics: A Mental Health Response to Infection Outbreak. Springer Nature Switzerland AG 2019.
- Maunder R, Hunter J, Vincent L, et al. The immediate psychological and occupational impact of the 2003 SARS outbreak in a teaching hospital. CMAJ: Canadian Medical Association journal ¼ journal de l’Association medicale canadienne 2003; 168: 1245–1251. https://www. ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12743065 (accessed 31 March 2020).
- Walton M, Murray E, Christian M. Mental health care for medical staff and affiliated healthcare workers during the COVID-19 pandemic. European Society of Cardiology 2020; 0(0):1-7.
- Williams R, Bisson J and Kemp V. Principles for responding to people’s psychosocial and mental health needs after disasters. https://www.apothecaries.org/wp-content/ uploads/2019/02/OP94.pdf
- Spencer SA, Nolan JP, Osborn M, et al. The presence of psychological trauma symptoms in resuscitation providers and an exploration of debriefing practices. Resuscitation 2019; 142: 175–181.
- Malta M, Rimoin AW, Strathdee SA. The coronavirus 2019-nCoV epidemic: is hindsight 20/20? EClinicalMedicine. 2020;20:100289.
- Shigemura J, Ursano RJ, Morganstein JC, Kurosawa M, Benedek DM. Public responses to the novel 2019 coronavirus (2019-nCoV) in Japan: mental health consequences and target populations Psychiatry Clin Neurosci; 2020 Feb 8. doi: 10.1111/pcn.12988. [Epub ahead of print].
1 A estrutura trinitária do real, imaginário e simbólico foi apresentada por Lacan nos seminários 19 e 20 (2012; 1985) para tratar da constituição do sujeito. O simbólico é uma articulação combinatória de significantes; o imaginário é tudo o que se pensa e se percebe dos objetos e das coisas do mundo; o real é a dimensão impossível, pois tudo o que sabemos dele está posto no imaginário.
Excelente texto! Reflexões muito pertinentes e contemporâneas!
Parabéns colega. Orando para os profissionais que estão na linha de frente permaneçam fortes … #juntossomosmais fortes#
Julia, obrigado pelas ótimas reflexões!