Sofrimento na Infância Durante a Pandemia da Covid-19: Reflexões Sobre o Trabalho do Analista
Os analistas que se dedicam a escutar os sujeitos ainda em constituição, ou seja, as crianças e adolescentes, têm se deparado, em tempos de Covid-19, com falas que por vezes desconcertam. Pegos de surpresa, nos vimos, em uma semana, afastados de nossos pacientes, aqueles com quem muitas vezes trabalhamos arduamente para que um laço humanizante pudesse se constituir, permitindo que se deslocassem de uma posição sintomática que lhes atravancava o desenvolvimento, mas também, para que pudessem vir a construir um sintoma estrutural que os sustentasse.
É interessante que as primeiras reações à epidemia relativas às crianças tenham ficado situadas na linha da orientação: “O que fazer com as crianças durante a pandemia?”, “Atividades para os pequenos na quarentena” e tantos outros conselhos aos pais sobre como manejar as situações com seus filhos nos períodos de confinamento. Frente ao vazio de saber, a tentação de produzir um roteiro que acalme pais e mães estressados é uma tentação de nossa cultura plena de manuais de autoajuda.
Estamos, no entanto, num tempo em que ainda predomina o espanto, tomados pela situação, sem que possamos contar com muitos dados ou experiências anteriores que permitam compreendê-la, enquanto sujeitos e analistas. Ouso, ainda assim, me perguntar sobre um depois para as crianças. Para isto, trago alguns relatos que nos ajudam a refletir sobre a infância e seus embaraços no momento pelo qual passamos.
“Sabes que não gosto de falar por whats, não me liga, não vou querer atender”, diz um adolescente com um importante laço transferencial marcado pela presença constante do corpo na cena do atendimento.
À fala acima agrego o pedido da mãe de um pequeno, por volta dos sete anos, que pede ajuda frente aos medos noturnos do filho, que adquirem um tom pesado durante o período da Covid.
A infância pode ser pensada como um território. Vemos que sua delimitação é, inicialmente, armada pelo Outro, um outro grandão, composto de vários outrinhos, que se é sustentado inicialmente pelos pais, irá aos poucos se estender da família à escolinha, dos irmãos aos amigos, do parquinho aos jogos de futebol ou aulas de dança, do território interno ao externo à casa. Mas também dos primeiros encantos e amores pré-puberais às relações sexuadas mais marcantes no início da adolescência. É dentro deste território, composto de um interno /externo que a criança vai se constituindo como sujeito de seus desejos, marcando suas características pessoais e se independizando aos poucos dos pais. Pode parecer mínimo e passar despercebido na vida diária, mas cada pequena saída da casa parental permite que a criança dê um passo a mais em seu crescimento e independização em relação à família. Por outro lado, permite à família reconhecer na criança alguém capaz de seguir sua vida futura quando os pais já não necessitarem estar mais tão presentes.
Penso numa pequena criança que ao sair de um risco de desconexão com o Outro, encontra-se com a quarentena. Sua “saída” é pedir aos pais um passeio de carro, mantendo assim a existência de um mundo “lá fora”, um mundo que exista além da telinha através da qual é atendido por suas terapeutas. É “lá fora” que pode expressar aos pais o que gosta e o que não gosta neste mundo, permitindo que estes reconheçam os interesses de seu filho externos à casa.
É a boa articulação dos laços iniciais, mas também a possibilidade da constituição de novos laços que permitirá à criança construir seu corpo, suas aprendizagens e hábitos, o qual levará como bagagem para o resto de sua vida, e que também servirão de estrutura na qual sua personalidade pode vir a sustentar-se. Por isto, perguntar sobre um pós Covid para as crianças passa por perguntar-nos sobre como estarão vivendo o momento atual.
Nas falas das crianças já citadas, vemos o transbordamento da angústia: de um lado, no corpo, que ao estar ausente da cena analítica, seja na infância ou adolescência, nos dá mostras de que, neste período, muito mais do que nas transferências analíticas com adultos, os corpos – do analista e da criança – se fazem cenário e suporte para que a palavra possa fluir. Como estão estes pequenos corpos reclusos ao ambiente familiar? É tão comum relacionarmos de forma banal a hiperatividade com o “aprisionamento” das crianças, mas este não é uma parada qualquer do corpo. Ela se faz necessária para que este corpo, suporte para que o brincar, sobreviva. Porém, não sem consequências.
A morte e os riscos, que se antes já apareciam nos discursos familiares, agora sobem de forma exponencial, brotando das telas de TV e celulares, impedindo às crianças e adolescentes o contato com amigos, avós e escola. Estes contatos, muitas vezes, além de constituintes, são espaço para que a criança possa “aliviar-se” de relações familiares densas e, mais ainda, ofertam lugar de reconhecimento da criança como sujeito frente aos outros.
Por outro lado, as angústias parentais frente à Covid podem também ser lidas nas crianças, mas também lidas por elas, nos semblantes angustiados de pais que entram em casa sem abraços, algumas vezes só com as roupas íntimas, buscando evitar o contágio dos familiares. Medos noturnos, regressões a sintomas anteriores, crises de agitação são apenas alguns dos sintomas que podemos escutar sobre as crianças neste período e requerem daqueles que da infância se ocupam um cuidado redobrado e criatividade na manutenção de contatos com as famílias e os pacientes, seja através de conversas com os pais, seja nos encontros online com as crianças ou nas mensagens de voz ou texto, que permitam a sustentação do laço transferencial.
Estes sintomas e dificuldades nos mostram o olhar aguçado das crianças sobre situações dramáticas, que insistimos em manter distantes delas, lançando luz sobre o sofrimento dos pequenos e sobre sua capacidade de interpretar as situações do mundo que elas vivenciam, produzindo suas próprias respostas.
A pergunta que faço sobre o “depois” vai requerer de todos, mas principalmente daqueles que à infância se dedicam, um espaço para que o traumático deste evento se transforme em palavras, em rabiscos, em desenhos, dando nome à angustia que marca e marcará a memória deste tempo que todos habitamos, tempo em que estamos todos, sem exceção, frente ao vazio, à falta de explicação e à morte.
Querida professora já havia lhe dito o quanto me identifiquei com o seu texto, muito pertinente, lúcido e verdadeiro. Obrigada pela escrita, pois ela, de forma muito bonita e simples, nos mostra que somos apenas seres humanos e que não daremos conta de tudo e ok! A incerteza nos ronda diariamente, mas agora se acentuou com a angústia… E tá tudo bem… Quando li, eu pensei: ufa! Pensei que estava sozinha navegando no barco da angústia e das incertezas… Mas vejo que não e agora já não me sinto tão sozinha mais… Sinceramente, muito obrigada ❤
É incrível como consegue transmitir clareza e conhecimento, com muito amor, em tudo que escreve.
Com certeza esse período vem sendo muito difícil para os pais, que por diversos momentos se perguntam o que fazer.
Que enquanto psicólogos possamos ajudá-los nesse momento tão difícil. Obrigada por compartilhar!
Outro dia pensava eu sobre como seria discutido em aula professora Mercês, às consequências do confinamento social sobre os corpos, nosso território.. Entao me deparo com teu texto que fala muito sobre meu questionamento.. Super!!!!