As relações humanas em tempos de pandemia
Estamos vivendo em um momento de perplexidade em função da Covid-19. O vírus colocou nosso planeta em estado de alerta e de susto, e a cada dia somos exigidos a uma nova tarefa, um novo modo de agir sem podermos assimilar com profundidade aquilo que nos designam a fazer. Fomos deslocados dos prédios e salas, dos corpos e dos barulhos humanos, para as telas e sons de nossos fones de ouvido, jogados a um novo espaço de estudo e trabalho, confinados em casa, conectados pela internet.
Muitas de nossas referências estão sendo questionadas e até mesmo sendo dispensadas. Há urgência para o enfrentamento das crises e dos sofrimentos que estamos vivendo e, ao mesmo tempo, nos deparamos com os limites e dificuldades de dar uma resposta eficaz e rápida para a solução de problemas.
Os valores da humanidade, por muito tempo foram centrados na estabilidade e na busca da segurança. Porém, nas últimas décadas, estamos sendo convocados a agir num mundo cuja velocidade nos arrebata e desacomoda muito rapidamente.
A imprevisibilidade e falência dos valores antes conhecidos podem nos causar mal-estar, aqui entendido como o desassossego diante daquilo que não sabemos e sobre o qual não temos perspectivas ou respostas. Há um grande sofrimento quando ficamos muito tempo em condições de incerteza.
Foucault (1990) ao discutir as ideias de Kant, em um artigo de 1783 para um jornal chamado de Was heisst Aufklärung?, sinaliza a possibilidade de articular o presente com o modo como nos constituímos enquanto sujeitos, para que possamos criticamente nos aproximar e elucidar o que nos assujeita e nos submete.
Essa interrogação crítica nos permite a construção de conhecimentos sobre nós mesmos e sobre o nosso próprio tempo. Assim, neste tempo de pandemia e isolamento, somos convocados à reflexão, a pensar a dor desse tempo presente.
As crises sociais surgem quando novas formas de vida rompem uma tradição cultural, ou quando mudam radicalmente os rumos de uma comunidade, seja por catástrofes naturais, guerras ou por doenças e pandemias, como a que estamos vivendo com o coronavírus.
Quando pensamos no impacto da Covid-19 nas relações de trabalho e de produção, assim como na sobrevivência das pessoas, observamos reduções de jornada de trabalho, diminuição de salário, suspensão temporária de contratos de trabalho, demissões, profissionais liberais e autônomos inoperantes ou com significativa redução de rendimentos com a necessidade de atualização de seus serviços.
As práticas dos(as) psicólogos(as) foram bruscamente alteradas e as intervenções precisaram realizadas quase que exclusivamente através da mediação tecnológica e não mais sustentadas pela presença física. No entanto, muitos ainda não estão familiarizados com atendimentos online, mesmo com esta prática já regulamentada pela Resolução CFP nº 11/2018[1] sobre atendimento psicológico on-line e demais serviços realizados por meios tecnológicos de comunicação à distância. Também há os casos em que os consulentes não aderem a este tipo de tratamento.
Também os professores em todos os níveis de ensino, repentinamente, tiveram de serem hábeis com câmeras, novas tecnologias, reuniões virtuais, assim como os alunos que tiveram que deslocar suas atividades para a internet com novas exigências e habilidades. Tantas demandas, antes conduzidas presencialmente e que passaram a ser administradas online.
Constatamos, também, o sofrimento dos profissionais da saúde, que estão na linha de frente, salvando vidas, enfrentando a dor e a morte, ausência de tratamentos confiáveis, convivendo com a impotência diária diante de um vírus que nos desacomodou e não ofereceu tempo para enfrentarmos suas consequências com ferramentas, remédios e terapêuticas suficientes. Além disso, evidenciou falhas históricas no cuidado com a saúde pública e de saneamento básico da população brasileira.
[1] Ler sobre a resolução em https://site.cfp.org.br/cfp-publica-nova-resolucao-sobre-atendimento-psicologico-online/ (CFP, 2018)
O stress, os índices de afastamento do trabalho, o adoecimento crônico, os boletins diários sobre as mortes, número de infectados, condições dos hospitais, notícias e vivências do cotidiano em pandemia, sinalizam um processo traumático, no qual a cada dia é acrescentado um novo ingrediente de tensão.
Estamos, enquanto humanidade, em constante processo de mudança e, na situação atual, num processo de quebra de continuidade exacerbada, na qual não temos tempo de minimamente nos acomodarmos, o que nos produz desconforto e impotência. Qual o impacto de tudo isso no nosso sistema psíquico e imunológico?
A pandemia traz uma tensão inusitada, uma descontinuidade em nos nossos modos de vida. Ela chegou, porém não anuncia uma previsão de término ou de solução definitiva e, com isto, provoca perdas e instabilidades emocionais, políticas e econômicas.
Diante deste quadro, que na verdade é muito mais complexo do que os exemplos escolhidos neste texto, temos muitas realidades sobrepostas, com condições socioeconômicas e sanitárias desiguais. Para Guy Durand (2003, p.156), […] “há justiça quando se obtém o que se merece, recebe-se o que é devido, colhe-se aquilo a que se tem direito”.
Já vivíamos em uma sociedade que nos incentivava ao individualismo, ao narcisismo e não desenvolvia nem estimulava práticas solidárias. “Haverá um número suficiente de nós para sustentar “nosso modo de vida”?” (Bauman, 2005, p. 171). A crise que enfrentamos mostra com muita clareza o quanto já não tínhamos condições equânimes de vida em nossas sociedades e a tragédia que isto acarreta.
Nas circunstâncias da Covid-19, as já existentes injustiças e desigualdades sociais, tornaram-se mais evidentes. Sobre este impacto nas pessoas menos favorecidas e em condições de vulnerabilidade, Preciado nos provoca a pensar ao dizer: “el virus actúa a nuestra ima- gen y semejanza […] De ahí que cada sociedad pueda definirse por la epidemia que la amenaza y por el modo de organizarse frente a ella”. (PRECIADO, 2020, p.168).
Nossos modos de vida se constroem dentro do campo social e, portanto, sofrem limites e barreias que vêm da cultura, das normatizações, dos valores, da política e da economia. Dá-se na fronteira do sujeito e o meio, numa relação de interferência mutua. Sujeito, meio e suas relações devem ser olhados de modo integrativo e indissociável. Estamos todos no mesmo barco, envolvidos na mesma problemática, porém, tragicamente, alguns estão muito mais vulneráveis do que outros.
Judith Butler é enfática ao expor a relação do vírus com as desigualdades sociais “El virus por sí solo no discrimina, pero los humanos seguramente lo hacemos, modelados como estamos por los poderes entrelazados del nacionalismo, el racismo, la xenofobia y el capitalismo”. (BUTLER, 2020, p 62)
As condições históricas produzidas pela humanidade muitas vezes nos desterritorializam, porém, são condições que resultam de nossas próprias ações enquanto espécie nas relações sociais e com a natureza. Criamos e somos transformados por nossas ferramentas, tecnologias e modos de vida.
Apesar das crises e do quanto as mesmas podem ser discriminatórias e excludentes, temos, enquanto humanidade, a possibilidade de inventar novos territórios existenciais a partir de nossas potencialidades, que não são inatas e nem abstratas e sim resultantes de nossas ações e do quanto nos permitimos afetar empaticamente pelos outros.
Na parte III do seu livro Ética, Spinoza destaca a importância dos afetos e, através deles, explica a sua ética ligada à vida, o pensar ligado ao sentir. Os afetos são a leitura que o corpo faz das coisas que o circundam e com as quais ele se relaciona. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída” (SPINOZA, 2009, p. 163).
A partir de Spinoza (2009), a ética enquanto reflexão, não prescinde dos afetos que circulam, e pode se configurar numa ética do entendimento, na qual os corpos decidem sobre seus bons e maus encontros. As afecções são o corpo sendo afetado pelo mundo e nos permitem trabalhar o campo ético, produzido em sintonia com a realidade e não numa razão, moral ou bem transcendente.
Nicole Diesbach (2015) ao falar sobre a proposta de uma educação transformadora do psiquiatra Claudio Naranjo, faz uma analogia com as palavras Ver e atre-ver-se. Ver é dar-se conta, é importante, mas não o suficiente. Podemos não estar comprometidos ou implicados e sermos apenas espectadores.
As relações de trabalho, educativas, sociais e familiares, podem construir ambientes que permitam ao sujeito atre-ver-se a construir novos saberes, atualizar modos de existência, desmanchar comportamentos cristalizados e despertar habilidades criativas.
Nestes tempos de incertezas, relações líquidas, inseguranças afetivas e profissionais, a ética como entendimento e reflexão sobre o presente, assim como reconhecimento da importância da alteridade, pode nos conduzir a construir outros dispositivos para aprender e trabalhar. E assim, quem sabe, novas potencialidades possam emergir, mesmo em momentos em que estejamos entrincheirados, como neste que estamos a viver.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. por Cláudio Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2005.
BUTLER, Judith. El capitalismo tiene sus limites. In: Sopa de Wuhan. AGAMBEN, Giorgio et al. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.
DIESBACH, Nicole. Posfácio. In: NARANJO, Claudio. Mudar a Educação Para Mudar o Mundo: o desafio do milênio. Brasília: Verbana, 2015.
DURAND, Guy. Introdução Geral à Bioética. História, conceitos e instrumentos. Edições Loyola, 2003. São Paulo.
FOUCAULT, Michel. Que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). [Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Societé française de philosophie, V.82, nº, p. 35 -63, avr/juin1990.
PRECIADO, Paul B. Aprendiendo del vírus. El capitalismo tiene sus limites. In: Sopa de Wuhan. AGAMBEN, Giorgio et al. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
Profundas reflexões, prof. Claudia! Obrigado!
Excelente texto e reflexão. Fiz a leitura como se vocês estivesse-o esplanando em aula. Obrigada Bernardi!
Belíssimo texto
Liiindas palavras
Assunto muito importante para refletirmos sobre o futuro, mudanças e transformações! Adorei , parabéns professora.
Ótimo texto, nos faz refletir sobre as transformações necessárias para seguirmos em frente.