Não só de trabalho vive o homem: uma análise do filme “O Corte”
A socióloga francesa Dominique Méda (1997), autora de diversas obras sobre o mundo contemporâneo, costuma dizer que […]“o trabalho é muito importante na identidade dos indivíduos modernos; as pessoas buscam não somente uma renda, mas também um lugar na sociedade, uma possibilidade de se realizar (p. 12).” Em torno desta problemática gira também a obra do renomado diretor Costa-Gavras, intitulada ¨Le couperet” (O corte, 2005).
O filme de Costa-Gavras poderia ser visto simplesmente como um thriller de suspense, com um serial killer que é procurado pela polícia, mas que consegue levar adiante o seu plano assassino sem ser descoberto. Ou então como uma espécie de comédia (absurda) com um pai de família comum que enlouquece e começa a matar os seus rivais. Mas a questão proposta pelo filme “O Corte” é muito mais profunda. Costa-Gavras quer fazer refletir sobre a brutalidade do sistema econômico atual e da consequente precariedade do mundo do trabalho. Serve como denúncia ao ambiente extremamente competitivo e selvagem no mundo dos negócios, que leva as pessoas a decisões extremas.
Além de Bruno, o assassino em série que faz de tudo para voltar a ter sucesso profissional, o filme propõe outros comportamentos extremos, como o suicídio de um dos concorrentes, ou a embriagues compulsiva de outro, ou ainda a desestruturação familiar de praticamente todos os personagens, seja pela situação de instabilidade após a demissão, seja pelo excesso de trabalho enquanto empregado. Nas relações com as suas “vítimas” e em diversos encontros paralelos emerge a verdadeira reflexão proposta pelo diretor: o desespero e a fragilidade humana, a insustentabilidade do sistema trabalhista, a desumanização das relações no mundo moderno (pessoal, familiar e trabalhista), a relatividade dos valores como a vida e a ética, a supremacia da economia na sociedade atual, a ganância corporativa, a ineficácia política diante da globalização, e assim por diante.
Costa-Gavras (2005), conhecido pelo teor político e social que impõe às suas produções, propõe aquilo que alguns críticos chamaram de “darwinismo social”, um processo evolutivo onde prevalecem apenas os mais fortes. Mas o seu objetivo é estabelecer uma crítica irônica (por vezes cínica e grotesca) ao capitalismo predador e ao consumismo, contra todo o seu sistema agressivo, muito bem apresentados nas diversas cenas ligadas à publicidade e ao estilo de vida que o protagonista luta para manter. No filme, a questão do consumismo de objetos e de corpos perfeitos é explorada em diversas situações, como é mostrado nos anúncios de bocas perfeitas em outdoors espalhados pela cidade. O desemprego aciona uma série de cortes no consumismo: a televisão a cabo, a ameaça da moradia, dentre outras perdas materiais. Mas descortina também os cortes na estabilização das relações familiares e sociais, na produção de marginalização social promovida pela perda do trabalho. Em uma cena marcante, o protagonista formula um desabafo: “meu trabalho era tudo para mim”. A pertença a uma organização, à empresa Arcadia, aparece na trama como algo que está para além da possibilidade de obtenção de uma remuneração, emergindo como um significante que confere um nome. Bruno Davert, da Arcadia é o que o protagonista busca restituir a fim de assegurar o seu lugar no mundo.
Algumas cenas do filme inclusive, faz pensar em um ciclo que se reabre. Ao mesmo tempo que mostra o “sucesso” de Bruno, que consegue ludibriar a polícia e alcançar o tão almejado emprego, apresenta o seu encontro com uma jovem que aparentemente tem um plano e modus operandi similar ao do nosso protagonista. Entretanto, toda a obra, em meio a aparentes estereótipos (o filho rebelde preso por furto, a esposa dona de casa que busca um emprego precário e uma relação extraconjugal, profissionais com alta formação que fazem trabalhos banais, mecânico que superfatura um serviço, etc.), se transforma em crítica social.
O filme de 2005 baseia-se no romance “The Ax”, de Donald Westlake, de 1997. Ax (“machado” em inglês) ou couperet (“cutelo” em francês) são as novas ferramentas “de trabalho” do protagonista para se vingar ou responder à lei da selva vigente nas grandes corporações. O título em português (“O corte”) é mais subtil e simbólico, brincando com as palavras, num espírito sarcástico que marca toda a obra. Após seu “corte” da empresa que busca o “corte” de gastos, deixando a França para se transferir para o leste europeu onde os custos são mais baixos e salários e direitos trabalhistas menos dignos, Bruno intui que o único modo de voltar ao posto desejado é através do “corte” de concorrentes.
Interessante perceber a intenção do diretor em mostrar uma certa progressividade na caracterização do protagonista. Inicialmente muito temeroso e tenso, aos poucos Bruno vai se “especializando” no mundo do crime e se liberando de qualquer escrúpulo moral, o que nos leva a uma reflexão sobre a ética nas organizações. É um personagem complexo, que pode ser analisado sob várias perspectivas. O contexto foi decisivo para conduzir Bruno a um plano macabro e desumano, mas não podemos negar que somente uma pessoa com predisposição e tendência psicótica é capaz de concretizar tal plano. As hesitações são momentâneas, pois para ele é claro o objetivo final, afirmando que os fins justificam os meios.
No final permanece a incógnita se estamos diante de um perfil psicótico de serial killer que encontrou a justificativa ideal para desencadear a sua criminalidade, ou diante de um simples ser humano que exposto a uma situação extrema de desespero diante da demissão e da falta de dignidade que tal situação comporta sente que o título de homicida é menos pesado e vergonhoso que o de desempregado.
Por mais que o trabalho dignifique o ser humano, ele não pode ser “deificado”, pois são tantos outros elementos que definem e edificam o indivíduo. Como conclusão aberta à reflexão, vale a pena recordar aqui o que afirma a francesa Dominique Méda (1997), no seu livro Sociedade sem trabalho: por uma nova filosofia da ocupação:
“As repúblicas e as sociedades contemporâneas se declaram fundadas no trabalho, apresentando esse fato como natural, certo e imutável, a ponto de tornar o direito ao trabalho o direito de o cidadão se realizar. Ideologias e teorias foram construídas sobre esse mito dos tempos modernos, que depois entraram em colapso diante da crise do emprego nas sociedades industriais avançadas. Foi buscada uma solução na economia e na criação de empregos; mas o problema não é e nunca foi apenas econômico, técnico ou político, nem o trabalho é necessariamente a base das sociedades. É necessária uma nova reflexão crítica, que leve em consideração as representações feitas do trabalho na história, para esclarecer uma questão que coloca em risco a liberdade dos indivíduos e a sobrevivência da civilização industrial moderna.” (pg 129).
Diante do cenário atual, pandemia, o fato de ter um emprego pode ser considerado um certo “luxo” não disponível a todos. Então, embora o trabalho na cena capitalista apresente vários impasses ainda assim ele é fundamental e sua ausência pode ser motivo de adoecimento e exclusão social. No contexto da segunda década do ano 2000, quais os “Cortes” que estão acontecendo? Quantos ainda estão por vir? O momento pede um olhar atento e, esperançar dia a dia é um convite para a resiliência e a criatividade.
Referência: MÉDA, D. Società senza lavoro. Per una nuova filosofia dell’occupazione (Italiano) Copertina flessibile –1997
Texto: Sandra Zambon, estagiária Npot, 2020/2
Fantástica a sua análise, parabéns!