Tempos de pandemia: conectados 24hs. Novas estratégias de trabalho durante a estratégia do isolamento social.
Lá se vão 8 meses desde o começo das estratégias de isolamento social devido à pandemia do COVID-19 no Brasil, no início muitos se perguntavam: -quanto tempo vai durar, -será que até o final do semestre já teremos voltado às aulas presenciais? E assim terminamos o primeiro semestre/2020 e começamos o seguinte.
Ampliaram-se as lives, as reuniões virtuais, as aulas online, e rapidamente muitos tiveram que se adaptar, sim muitos, mas não todos, pois nem todos em uma sociedade de muitas disparidades têm acesso a meios de comunicação virtual. Nem todos puderam inclusive adaptar ou manter seu trabalho durante este processo, pois uma pandemia traz consigo efeitos do isolamento nas relações interpessoais (como depressão, violência, etc.) e também efeitos sociais desemprego que ampliam as desigualdades sociais.
O trabalho ocupa um lugar na nossa civilização, seja ele o de sobrevivência, prazer, desprazer, e reconfigura as relações sociais entre os seres humanos, estabelecendo ou reforçando inclusive relações de poder, “o trabalho, esse ato laborativo, também degrada, aliena, explora e desvaloriza o potencial humano e de forma selvagem expõe os trabalhadores em precárias condições de trabalho”. (MENDES, 2009). Na forma como está organizado, para muitos trabalhadores reproduz mecanismos de controle e reforça modos de subjetivação culturais nos quais aqueles que fogem ao “establishment” são vistos como anormais da ordem.
Considerando o momento pandêmico, aqueles que tiveram que continuar seu trabalho presencial, tiveram que se adaptar entre muitas sensações, ao medo ou ainda à negação do risco. Já para aqueles que tiveram que continuar seu trabalho de forma virtual, a adaptação foi a uma espécie de plug ligado 24 horas, impulsionado pelo acúmulo de trabalho imposto pela adaptação rápida necessária, e acima de tudo pela ampliação de ações agregadas pela nova realidade. Novos formatos de produzir trabalho são assim acelerados, pois o trabalho transforma o objeto e também o sujeito que produz o ato em si, modificando a identidade do trabalhador.
Os relatos de inúmeros trabalhadores em teletrabalho tem sido “estou trabalhando muito mais em casa”. Como um “equilibrista de pratos” que precisa estar atento e ser ágil para responder às necessidades o estado de vigilância soa como um alarme sempre que se ouve o sinal sonoro de mensagens de aplicativos de comunicação como o “WhatsApp” ou outros recursos tecnológicos que são acionados mantendo atentos os trabalhadores mesmo fora do horário de trabalho.
O trabalho em especial após o período industrial foi sendo transformado para que pudesse ser retirado o melhor proveito dos recursos humanos e materiais. Mesmo com as investidas em ações de trabalho em equipes, motivação, ergonomia, a grande maioria da população não está contemplada nestas ações, e o que se vê é uma parcela da sociedade colocada à margem do acesso a direitos básicos, bens e serviços. E isto também deve ser foco do trabalho da Psicologia, pois uma Psicologia que compreende a condição humana constituída pelo seu meio, não pode deixar de compreender a importância e a repercussão do contexto macrossocial e das condições de vida para constituição do sujeito. (BOCK, 2009
Somos resultado de um conjunto de experiências e fatores como a cultura, a história, a economia, e reproduzimos estes valores que são determinantes dos modos como nos tornamos sujeitos, e tecemos a complexa rede de relações, pois “é importante destacar que na sociedade capitalista as relações sociais se estabelecem a partir das contradições entre as duas classes fundamentais: capital e trabalho. ” (COSTA, 2005, p.165-166)
As chamadas tecnologias que facilitam a utilização do tempo se utilizadas sem crítica acabam por aprisionar as pessoas. Não há mais espaço para modos lineares de vida, vivemos relações de trabalho em rede, porém não se investiu no humano, mas se investiu maciçamente no tecnológico, temos, portanto, um embotamento do humano. (BAUMAN, 1998)
O ritmo cada vez mais veloz das ações realizadas via internet, a superficialidade pelo acesso fácil a muitas informações tem se refletido também no ritmo exigido nos contatos entre pessoas, diminuindo consideravelmente a tolerância com o ritmo e o tempo do outro. Uma sociedade que vive atualmente a intolerância, o aumento de transtornos depressivos e de ansiedade, em que a solução mais imediata para lidar com as sensações acaba muitas vezes sendo a medicação. Tudo num ritmo muito rápido, mas sem medir efeitos colaterais, e muito menos abrir espaço para trabalhar autoconhecimento, para que outras estratégias mais duradouras e eficazes possam ser lançadas por exigirem mais esforço, mudanças de hábito e encontro consigo.
Chegamos num ponto elevado do consumo, em que os produtos não são mais somente materiais, o tempo, o valor social agregado, e o próprio ser humano se tornou também um produto, vende-se não mais somente a força de trabalho, mas a imagem, num circuito vicioso que impele à modos de adaptação constante ao percebido socialmente como ideal. A própria noção de felicidade não é mais um estado, mas uma condição relacionada ao consumo para aproximar-se da imagem ideal. (BAUMAN, 2001)
A subjetivação é um processo que inclui múltiplos componentes, e que se multiplica através da comunicação, da linguagem, da ciência e da tecnologia, da cultura, do olhar sobre si e sobre o outro, construindo modelos ideais sobre o ser e estar no mundo. “Esses componentes são resultantes da apreensão parcial que o humano realiza, permanentemente, de uma heterogeneidade de elementos presentes no contexto social”. (GUATTARI, 1996).
A realidade não é estanque, a vida é pulsante, intensa e assim historicamente nossa sociedade passa por ciclos de avanços e retrocessos na construção de modos de convívio. Os modos de subjetivação são transformados conforme os movimentos deste tecido social, norteando as escolhas, os modos de submissão e poder, mas também as produções criativas de reorganização da humanidade frente aos desafios e quebra de modos rígidos estabelecidos pelo instituído, e de pauta de lutas contra as formas de exploração e dominação social. (FOUCAULT, 2004).
Afinal, são os “homens que constroem o mundo social através do trabalho, são eles que produzem a riqueza e a pobreza humana”. (COSTA, 2005, p172). São os seres humanos, portanto, os sujeitos que podem modificar as relações, que podem definir futuros distintos e frear o crescimento do capital como valor que se sobrepõe ao humano.
Cabe então ao próprio humano construir novas estratégias para sustentabilidade material e relacional, mas isto depende das escolhas, das ações, e dos caminhos que são trilhados, o futuro só poderá ocorrer como resultado do hoje.
Para finalizar gostaria de deixar perguntas como quem bate um papo, para refletirmos juntos: o problema são as tecnologias ou somos nós humanos? O que fazemos com o tempo? Como lidamos com o tempo, nos permitimos espaço para o ócio, o que fazemos com nossa possibilidade de escolha? O que os pós pandemia terá para nos deixar de aprendizado…o que aprenderemos sobre nós mesmos, sobre nossas escolhas, o que nos aguarda o futuro se não tivermos um olhar crítico sobre o porvir e os novos modos de exercício de controle e de viver em sociedade…qual mundo e com qual sustentabilidade desejamos para um futuro bem próximo, são algumas das questões que a meu ver são importantes tanto no nível micro como macrossocial, e que requerem da Psicologia um posicionamento ético.
Referências:
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
Bock, Ana M. B. Psicologia e o compromisso social. 2a ed. São Paulo: Cortez. 2009.
COSTA, Lúcia Cortes da. O dilema brasileiro da desigualdade social. IN: COSTA, Lúcia C. da. (org.) Sociedade e Cidadania Desafios do século XXI. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2005.
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V. Ética, Sexualidade, Política. (E. Monteiro e I. A. D. Barbosa, trad.) RJ: Martins Fontes, 2004.
GUATTARI, F. e ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.
MENDES, Jussara R. Plenária 4: Saúde e Trabalho: impactos nas condições de trabalho dos assistentes sociais. SEMINÁRIO NACIONAL DE SERVIÇO SOCIAL NA SAÚDE. PERNANBUCO: 8, 9 e 10 de junho. Centro de Convenções Pernambuco, 2009.
SADER, Emir. Notas sobre a globalização neoliberal. In: MATTA, Gustavo C. e LIMA, Júlio César F. (org.) Estado, Sociedade e formação profissional em Saúde. Contradições e desafios em 20 anos do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/EPSJV,2008