Memórias de “Todo o Mundo” e laço social
Esta breve reflexão parte de uma citação do cientista político camaronês Achille Mbembe:
Hoje em dia, ainda não é claro para o senso comum que a escravatura dos negros e as atrocidades coloniais fazem parte da memória do mundo; ainda menos que essa memória, porque comum, não é propriedade apenas dos povos que foram vítimas destes acontecimentos, mas da humanidade no seu todo; ou melhor, enquanto formos incapazes de assumir as memórias de «Todo o Mundo», será impossível imaginar um mundo verdadeiramente comum e uma humanidade verdadeiramente universal (MBEMBE, 2017, p. 167-168).
A memória é um balizador privilegiado nesta constatação de Mbembe, acima destacada, do que faz entrave a possibilidade de imaginação de “um mundo verdadeiramente comum e uma humanidade verdadeiramente universal.”
No caso brasileiro, só muito recentemente, pressionado de forma contundente pelos movimentos negros, o mito da democracia racial vem sendo sacudido em seus alicerces, pela inscrição de memórias negras da história da escravidão – e em especial de suas resistências e conquistas – e de todo período pós Abolição, assim como das atrocidades coloniais cometidas. E o mesmo pode ser invocado quanto ao que diz respeito às memórias indígenas. O mito da democracia racial, tendo vigorado durante tantos séculos, serviu de argamassa a várias “teorias do senso comum”, segundo Lilia Schwarz (p.22, 2019), tais como: a de que este seja um país pacífico, de que somos uma democracia plena, e de que aqui inexistiriam ódios raciais, de religião e de gênero. Estas não constituem narrativas aferíveis, segundo a autora, e por virem de agendas tão arcaicas e ambíguas “funcionam na base da falta de contestação e do silêncio” (SCHWARCZ, 2019, p.22).
Desta forma, determinadas memórias têm sido silenciadas e excluídas da história oficial, acarretando a violência da supressão de algum referente fáctico no discurso social que poderia dar suporte ao traumático das experiências vividas. Esta lógica de apagamento, que tem exercido grande domínio em nosso país, faz obstáculo, portanto, ao reconhecimento da dívida simbólica contraída com os povos escravizados, que construíram com seu trabalho a riqueza da nação, e que continuaram a ser explorados e marginalizados quando encerrado o tempo da escravidão.
Mas Mbembe (2017), na citação antes mencionada, vai além de dizer que não está claro para o senso comum que a escravidão e as atrocidades coloniais fazem parte da memória do mundo. Ele enuncia ainda “que esta memória, porque comum, não é propriedade apenas dos povos que foram vítimas destes acontecimentos, mas da humanidade no seu todo”. Com isso, ele aponta que a sociedade racista que decantou da ausência da inscrição destas memórias implica em uma perda para “Todo o Mundo”.
A grande provocação contida no pensamento do autor, me parece, é a de nos fazer perguntar se os privilégios da branquitude, que advém da exclusão das memórias das atrocidades e das resistências frente a elas, que fundam nossa nação, “compensam” para os brancos, onde me incluo, a desumanização contida no laço social, no qual todos estamos imersos? A crueldade, a indiferença à dor do outro que marcam nosso funcionamento social perverso, e de que tanto nos queixamos, não seriam o retorno do recalcado que insiste com a repetição onde as memórias traumáticas não podem ser inscritas? Existe algum outro caminho para a humanização de nosso laço social que não passe, portanto, pelo resgate das memórias que implicam na responsabilização pela dívida simbólica contraída com os povos escravizados – negros e indígenas – para a construção deste país?
Sabemos que a exploração implacável do labor humano envolvido no projeto colonial escravista – que constitui o primórdio do capitalismo – não se esgotou ao seu término. Esta lógica subsistiu inalterada nas relações que desqualificam o trabalho pesado e invisibilizado que alicerça cotidianamente o funcionamento de nossa sociedade, balizada no racismo estrutural que lhe dá sustentação.
A polissemia do significante “trabalho” pode ser desdobrada ainda para problematizarmos o nosso próprio ofício enquanto trabalhadores da escuta e para indagarmos o preparo em nossas formações profissionais para o acolhimento destas memórias subterrâneas excluídas, mas constitutivas do nosso laço social.
Referências:
MBEMBE, Achille. A Política da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.