A Psicologia do além-mar: a jornada de um jovem brasileiro na Universidade do Porto (FPCE-UP)
Chamo-me João Mury, tenho 23 anos e vivo no Porto, em Portugal, desde 2017. Desde cedo tive a vontade de estudar fora e, em 2016, fiquei a saber da possibilidade de utilizar o ENEM como forma de ingresso ao ensino superior no além-mar. Dessa forma, iniciei meus estudos na Licenciatura em Gestão da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, tendo o concluído em 2020, com a duração de 3 anos letivos. Desde que comecei a refletir do que poderia ser meu percurso profissional, a Psicologia sempre foi uma área que me instigou, tanto pelas influências da família e de amigos, quanto pela vasta possibilidade em termos de áreas a atuar no mercado de trabalho. Enquanto imigrante motivado a continuar em Portugal e a viver um período de desvalorização cambial sustentada do real face ao euro, a necessidade de encontrar um trabalho a seguir à Licenciatura foi imposta. Assim, iniciei meu primeiro emprego em uma empresa na área da investigação clínica, sediada no Porto.
O ingresso no mercado de trabalho não cessou a minha curiosidade e interesse pelo estudo da Psicologia. É de notar que concomitantemente ao trabalho em Portugal, mantive remotamente com amigos estudantes de Psicologia no Brasil, um grupo de estudos em Psicanálise. Dessa forma, enquanto trabalhador a full-time candidatei-me em 2021 à Licenciatura em Gestão da Faculdade de Psicologia e de Ciência da Educação da Universidade do Porto (FPCE-UP) e fui aceito sob o mesmo regime que ingressei para Gestão em 2017, o estatuto de Estudante Internacional.
Podem notar que foi referido o ingresso na “Licenciatura” em Psicologia, mas até o ano anterior, não era assim. Até 2020, no seguimento da Declaração de Bolonha assinada em 1999, alguns países entendiam que certas formações só poderiam seguir ciclos mais longos (Medicina, Psicologia, Engenharias, etc.), pelo que se instituiu o termo “Mestrado Integrado”, que nada mais era do que a junção de “Licenciatura” e “Mestrado” no mesmo curso. Este formato foi revisto – apenas Portugal, Espanha, Itália e Inglaterra mantinham este modelo – e em 2021, por uma estratégia de maior mobilidade dos estudantes, o Mestrado Integrado em Psicologia na FPCE-UP passou a se dividir em dois cursos: Licenciatura em Psicologia e Mestrado em Psicologia.
Desta forma, ingressei num momento de transição e revisão curricular. A Licenciatura seria comum a todos e concederia as bases para a especialização futura, no Mestrado. O segundo ciclo de formação apresenta 4 opções de especialização: Psicologia Clínica e da Saúde; Psicologia da Educação e Desenvolvimento Humano; Psicologia da Justiça e da Desviância; Psicologia das Organizações, Social e do Trabalho.
Estava consciente de que o primeiro ano de formação apresentaria apenas grandes bases do curso. Estudei, por exemplo, Genética Humana, Epistemologia e História da Psicologia e Estatística. Após analisar a estrutura do programa letivo e de conversar com diversos estudantes e professores, notei claramente uma busca por uma abordagem mais científica e empirista da psicologia no curso, o que pode levar a uma valorização dos métodos quantitativos e experimentais em detrimento de abordagens mais qualitativas, como a Psicanálise. Isso pode ser resultado de tendências acadêmicas, pressões por resultados concretos e a busca por uma maior aceitação por parte da comunidade científica mais ampla. Essa tendência se nota também na graduação em Psicologia de outras universidades portuguesas.
Essa falta de criticidade e estudos em psicanálise pode ser um reflexo da prevalência de abordagens mais empiricamente orientadas no cenário acadêmico e de pesquisa em Portugal. Isso não significa que a Psicanálise seja completamente negligenciada, mas sim que pode não receber a mesma atenção e recursos que outras abordagens mais alinhadas com os critérios de cientificidade.
No letivo de 2022 (que vai de setembro de 2022 a meados de junho/julho de 2023), não tive disponibilidade de continuar os estudos na Faculdade, pela excessiva carga horária que o curso demandava, que se impossibilitou de conciliar com o horário de trabalho convencional. Apesar disso, tenho planos de retomar os estudos no próximo ano letivo, em 2024.
De forma conclusiva, devemos olhar para a aventura de alçar voos e viver longe da nossa terra como uma viagem solitária para dentro de nós mesmos. Os percalços do caminho, como a solidão em momentos difíceis, a colonialidade e a saudade são mais intensos, é verdade, mas são acompanhados pelo maior benefício que posso tirar desta jornada, a viagem dentro de mim mesmo, que recomeça todos os dias por aqui.
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse:
“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.
José Saramago (Viagem a Portugal), 1981.
Equipe NPOT 2023/1
Autores:
Ana Charão. Estagiária do NPOT. 2023/1
Gabino Moraes. Estagiário do NPOT. 2023/2
Supervisora: Profa Dra. Márcia Aparecida Vitorello