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Reflexões sobre o trabalho na clínica popular e seus atravessamentos sociopolíticos

Jéssica Nunes Colveiro. Graduada em Psicologia pela Faculdade São Francisco de Assis.
Especializanda em Atendimento Clínico com ênfase em Psicanálise pela UFRGS.
Membra colaboradora da Comissão de Processos Clínicos e Psicossociais do CRPRS. Atua em clínica privada.

Nasci inscrita numa geração familiar onde as mulheres não tiveram a chance de registrar seus traumas. A dureza da luta diária para garantir o básico da sobrevivência não as autorizava a sentir suas dores, pois isto era confundido com fraqueza. Com isso, a frase “isso não me afeta” imperava em minha família. Minha impossibilidade de crer nesse semblante inabalável como verdade, se desdobrou numa profissão a acolher justamente os afetos, as afetações e os afetados.

Com a inserção dos psicólogos em clínicas populares, a psicologia clínica pareceu descer dos bairros nobres e adentrar às vilas como uma grande promessa de acessibilidade. Quando me formei em psicologia, comecei a trabalhar em uma clínica popular.

Canva, 2023

Como teoriza Nasio (2019), o terapeuta utiliza o inconsciente instrumental para acessar o inconsciente do paciente. Sendo assim, numa conversa técnica entre inconscientes, eram registradas as marcas de história e da subjetividade de cada pessoa a adentrar no meu consultório. Entre muitos processos nada lineares, juntos íamos reescrevendo tais marcas para dar continuidade em histórias cada vez mais autorais.

Realizei a escuta de crianças, adolescentes, adultos e idosos. Havia muitos casos de pessoas abusadas sexualmente. Estive junto no processo de luto da mãe cujo filho foi assassinado pelo tráfico. Brinquei com a criança cujo pai estava preso ou falecera, durante um grande segredo vergonhoso para a família. Ouvi pessoas despedaçadas, por diversos motivos, até por terem perdido pessoas por doenças possíveis de serem tratadas, mas cujo fatores de negligência levaram a morte. Ajudei a aliviar o peso daquele(a) a sustentar uma família fragmentada, onde sua sanidade neste núcleo doente, já beirava a loucura.

Canva, 2023

Ouvi absurdos tomados como normais, pessoas se culpando por não conseguirem rir após ouvirem uma piada sobre sua raça, seu gênero ou sua sexualidade. Mulheres vinham até mim, se sentindo quase sempre chatas e/ou loucas. Como essas duas palavras se repetiam tanto, se a história é singular? O grito desesperado impulsor destas nomeações, vinha dizer “me respeita, me ouve, me vê, me cuida”. Como fala a psicanalista Xavier (2022), as mulheres são incentivadas, desde a infância, a cuidar e não a serem cuidadas. Eram tantas violências nunca nomeadas como tal. Os vinte e dois reais por paciente, valor recebido pela consulta, naquela época, se desdobravam em dezenas de testemunhos de uma sociedade em crise.

Canva, 2023

O capitalismo veio como um colonizador a fincar bandeira no solo, os cinquenta minutos de sessão viraram vinte. Como argumento pela diminuição do tempo, a clínica disse ser para contemplar mais pessoas. Quem detém o poder tem dessas coisas, gosta de vestir a roupa de salvador.

Em um vão da capa marketeira dessa fala, eu poderia ler “são pobres acostumados ao resto, se não podem pagar muito, se dedique menos a eles, muitos virão e assim, no montante, vamos ganhar bem”.

No entanto, era pobre também, filha do pedreiro e da comerciante de uma vila, fui bolsista formada através de coleções de empregos e muita renda extra. Obviamente, esse sucateamento também seria voltado a mim e ao meu trabalho.

Meu almoço virou sanduíche, ir ao banheiro atrasaria pacientes, o esgotamento e a frustração se fizeram presentes. Já não havia mais clínica, nem escuta possível.

Faltava coragem para anunciar a regra fundamental, ensinada por Freud (1893 -1895), pois como poderia dizer para o paciente falar livremente, sem censura, vergonha ou julgamentos se quando as barreiras começavam a cair… “Acabou teu tempo, até a próxima sessão”?

Canva, 2023

Sísifo, personagem da mitologia grega, foi punido pelos deuses a rolar diariamente, montanha acima, uma pedra fadada a cair. A parte árdua para ele, não era quando estava em esforço físico, mas quando descia a montanha pensando em sua triste maldição. Minha pedra de Sísifo era o esforço para escutar alguém em poucos minutos, a angustiante descida da minha montanha era não conseguir trabalhar conforme eu acreditava ser um bom trabalho.

Hoje não atendo mais em clínica popular, tenho minha própria clínica online. Minha clínica tem minha identidade, meu nome, minha história e pitadas do meu propósito para ela. Ela não é terra sem lei a ser submetida, quem a define sou eu. Como disse Nasio (2014), a primeira relação do analista não é com o paciente e sim com a psicanálise.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria (1893 – 1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

NASIO, J.-D. Como trabalha um psicanalista? Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

NASIO, J.-D. Sim, a psicanálise cura! Rio de Janeiro: Zahar; 1° edição, 2019.

XAVIER, Manuela. De olhos abertos: uma história não contada sobre relacionamento abusivo. Rio de Janeiro: Best Seller; 2ª edição, 2022.

One thought on “Reflexões sobre o trabalho na clínica popular e seus atravessamentos sociopolíticos

  1. Lindo escrito, parabéns lindona, foi épico ter me graduado contigo na antiga UNIFIN e saber que também continuasse no meio acadêmico e em causa sociais

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