Cartografias do acolhimento institucional: entre pistas e possibilidades
O percurso histórico da institucionalização das crianças e adolescentes no Brasil no século XVIII, XIX e XX é marcado por práticas higienistas, corretivistas e punitivas. Com o fim da ditadura militar e a possibilidade da criação de um Estado democrático, através da formulação da Constituição Federal em 1988, foi desenvolvido uma nova forma de proteção para a infância e adolescência fazendo com que essas faixas etárias finalmente ingressassem no mundo dos direitos com caráter prioritário. Em 1990, é desenvolvido o Estatuto da Criança e Adolescente (BRASIL, 1990), onde foi criado um sistema de garantia de direitos, fazendo com que Estado e Sociedade se articulassem com o propósito de garantir os direitos e a proteção integral das crianças e adolescentes, como saúde, educação, convivência familiar e lazer (Rizzini & Rizinni, 2004).
Com a construção da Política Nacional da Assistência Social (PNAS), o acolhimento institucional passa a fazer parte da Proteção Social Especial de Alta Complexidade1(PNAS, 2004). Conforme a PNAS, o acolhimento institucional possui diferentes modalidades, o espaço em que trabalho conta com uma equipe interdisciplinar, fazendo parte educadores socias, articulador, auxiliar de serviços gerais, cozinheira, coordenadora, psicóloga e assistente social. O espaço acolhe de maneira temporária até 20 crianças e adolescentes que ingressam por estarem com seus direitos ameaçados ou violados. É um local que funciona com uma rotina semelhante a uma residência, estando localizado em uma área urbana oferecendo proteção, cuidado digno e singular a cada criança e adolescente.
O ofício da psicologia no acolhimento institucional, enquanto equipe técnica2, é realizar o acompanhamento psicossocial das crianças e adolescentes e suas respectivas famílias e/ou laços comunitários; auxiliar o trabalho dos educadores sociais; realização de discussão de casos de forma intersetorial, ou seja, com outros dispositivos da Assistência Social, SUS, Educação, Poder Público (Judiciário e Ministério Público), demais políticas públicas e outros órgãos do sistema de garantia de direitos; organização de informações individuais de cada acolhido(a); realização de relatórios contendo informações a respeito de cada crianças e adolescente ao Juizado da Infância e adolescência; preparação gradual para o desligamento; desenvolvimento do Plano de Atendimento Individual (PIA); participação de audiências entre outras atividades (BRASIL, 2009).
Frente as diversas e complexas demandas que a equipe técnica se depara diariamente se faz necessário desenvolver dispositivos de cuidado que não promovam exclusão e, para isso, a interlocução com outros saberes se faz fundamental neste processo. Penso na importância da epistemologia das macumbas (SIMAS & RUFINO, 2018), onde o cruzo enquanto enlace de diferentes saberes promove o encantamento e, portanto, a abertura de possibilidades através das encruzilhadas, onde o saber encantado, segundo Simas e Rufino (2018, p. 34), […] “não passa pela perspectiva da morte. A morte é aqui compreendida como o fechamento de possibilidades, o esquecimento, a ausência de poder criativo, de produção renovável e de mobilidade: o desencantamento”.
Ao referir a ideia da construção de dispositivos que promovam aberturas, possibilidades de saídas da invisibilidade, é importante trazermos para nossa roda de ideias a concepção de Broide (2016), a partir de sua leitura de Agaben (2010), onde o dispositivo possibilita a circulação da palavra gerando reflexões e constrói maneiras de enfrentamento de situações que geram sofrimento. Como nos diz Broide3, “o dispositivo é uma maneira de fazer ver e falar”.
No espaço de acolhimento em que trabalho, um dispositivo que se apresenta potente é o grupo desenvolvido com as crianças, adolescentes e educadores, intitulado como “grupo dos sentimentos”, onde início o momento com a manifestação de alguma forma de arte através da poesia escrita ou cantada e depois a palavra circula.
O grupo dos sentimentos com o viés clínico da psicanálise é um espaço de escuta onde a palavra circula e os processos de singularização operam (BROIDE, 2016) fazendo emergir reflexões sobre raça, a valorização da ancestralidade, gênero, diversidade cultural, coletividades.
O grupo enquanto possibilidade de desenvolver outras formas de trabalho, como maneira de resistência, se mostra potente também ao grupo de educadores, onde após a leitura do poema “Ainda assim eu me levanto”, de Maya Angelou (1978) e as manifestações a respeito da raça dos participantes, os educadores sociais negros se sentiram convocados a desenvolver um grupo sobre negritude e ancestralidade com as crianças e adolescentes do espaço.
A arte e a escuta como dispositivo potente de acolhimento!
O trabalho no acolhimento institucional se potencializa através das pistas do encantamento, aberturas, imprevistos, arte, dispositivos, invenções e de tantas outras formas que são impossíveis descrever. Estas aberturas diante de um trabalho complexo e muitas vezes sob ataque, frente as constantes desmontes e da impossibilidade de os trabalhadores da assistência social ingressar no calendário de vacinação contra a COVID-19, me potencializam a resistir em tempos difíceis onde o “ISMOS” estão presentes, através do negacionismo, reducionismo e fascismo.
Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2.ed. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010
ANGELOU, M. Ainda assim eu me levanto (Still I Rise), 1978
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Atualizada em 2008.
______. Estatuto da criança e do adolescente: lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990. São Paulo: Atlas, 1990.
_________, (2004). Ministério de desenvolvimento social e combate à fome. Política Nacional de Assistência Social (PNAS) -Brasília, secretaria Nacional de Assistência Social.
____________. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Nacional de Assistência Social. Orientações técnicas para os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. 2a edição, 2009.
BROIDE, J; BROIDE E. A psicanálise nas situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções.2ª Edição. São Paulo: Editora Escuta, 2016.
RIZZINI, I; RIZZINI, I. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004.
SIMAS, L; RUFINO, L. Fogo no mato: as ciências encantadas das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
1 Alta complexidade são dispositivos que “garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e, ou, em situação de ameaça necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e, ou, comunitário.” (PNAS, 2004, p. 38)
2 A equipe técnica do município de Porto Alegre é composta por um(a) profissional da psicologia e do serviço social.
3 Desconheço se Jorge Broide realizou a citação desta ideia em seus livros, mas a frase foi referida em seu curso de extensão “A construção de dispositivos psicanalíticos nas situações sociais críticas” oferecido pela PUC-SP no ano de 2021.