Projeto Gradiva: do trabalho de análise à subversão do Real dos vínculos de trabalho
Carla Cervera Sei¹
Maria Rosane Pereira²
Carla Costa Silvestrin³
“A violência é tão constituinte do que é ser mulher nisso que chamamos mundo como ossos, órgãos, sangue. […] Compreendemos o que somos pela ameaça aos nossos corpos”(BRUM, 2021).
Em 2019, um grupo de psicanalistas que se reunia quinzenalmente para estudar “A clínica do feminino: o mal-estar na feminilidade”, na Associação Psicanalítica de Porto Alegre, começa a gestar, a partir da convergência de vários desejos, o que viria a se constituir no Projeto Gradiva – Atendimento clínico psicanalítico a mulheres em situação de violência.
O Projeto Gradiva é um espaço de atendimento clínico psicanalítico, prioritariamente gratuito, destinado a escutar todas aquelas que se identificam como mulher e que estejam em sofrimento psíquico devido a situações de violência (física, moral, patrimonial, psicológica e sexual). Além dos atendimentos individuais, o Projeto oferece os grupos de palavra – que são espaços coletivos de narrativa que visam formar redes de sustentação entre as mulheres e compartilhamento das experiências, buscando romper o silêncio devido à violência sofrida – e os grupos de formação de leitoras, que têm por objetivo contribuir para o desenvolvimento do prazer do texto literário. Promovemos ainda, rodas de conversa e saraus, buscando interlocução com nossos pares e com a cidade, visando ampliar e implicar a todos nesse importante sintoma social.
Para nós, psicanalistas da equipe do Projeto Gradiva, escutar mulheres em situação de violência, refere-se ao desejo de intervir nesse grave sintoma social, além de estar em sintonia com a realidade do nosso tempo, afirmando nossa responsabilidade com a cultura e com a cidade onde nosso trabalho e nossa cidadania se inscrevem.
Em nosso entendimento, o feminino parece ser o catalisador do mal-estar social, posto que a condição feminina é a condição humana por excelência. A psicanálise nos ajuda a pensar essa condição, já que o feminino situa a diferença, a alteridade, o “não-todo” – aspectos intoleráveis para uma sociedade permeada pela dimensão imaginária da lógica fálica, ultramoderna e neoliberal, que não admite nenhum registro da falta. O feminino ocupa, na nossa sociedade, o lugar do horror e do insuportável, pois denuncia a finitude e a incompletude humanas. Neste contexto, o feminino é recusado, de maneira exacerbada, e sabemos o preço que as mulheres pagam por tal recusa.
O Projeto Gradiva visa oferecer às mulheres que buscam escuta, alguma possibilidade de ultrapassar o traumatismo sofrido, revisitando suas histórias para poder ir além delas e se reinventar enquanto mulher, para que possam amar e trabalhar, pois o amor e o trabalho exigem de cada sujeito uma considerável carga de investimento libidinal, o que supõe uma grande transformação na economia psíquica. Esta é a grande aposta da travessia de uma análise, que é, em si, um trabalho longo e árduo: produzir um deslocamento de seus investimentos pulsionais que tenha como efeito uma importante mudança na relação com o mundo exterior, no qual elas se mantinham reféns de um Real. E este inominável, este insuportável do Real que as paralisa, se traduz em larga medida pelas relações de trabalho – sempre no registro da menos valia – trabalhar muito e ganhar quase nada – e extenuando seus corpos (corpos negros, em grande parte). Além disso, são massacradas também pelas formas contratuais perversas, que as descartam feito dejetos, caso questionem alguma condição.Trabalhadoras do setor industrial ou de terceirizações de serviços de limpeza, essas mulheres vivem um verdadeiro pesadelo diurno, em cada jornada de trabalho, da qual elas não podem prescindir para sobreviver. Podemos, a partir daí, construir a hipótese de que a violência conjugal que sofrem repetidamente se sustente da mesma situação de aniquilamento físico e subjetivo que essas mulheres sofrem nas suas empreitadas para não ficar sem trabalho.
Nossa aposta é a de que cada uma possa deixar emergir, a partir do trabalho de análise, sua condição de sujeitos de um desejo, o que faz com que elas desconstruam radicalmente a lógica da menos valia que até então regia suas vidas. Essa é a grande empreitada da análise: que elas possam construir uma outra lógica, em sua economia psíquica, a partir da qual elas se reinventem como mulheres, o que lhes dará, então, acesso ao trabalho sem o Real da violência dos vínculos. É nesta direção que, enquanto psicanalistas, trabalhamos com nossa escuta, pois o que nos interessa é que essas mulheres saiam da paralisia na qual o Real da violência as fixou e possam seguir em frente em suas vidas, como bem diz a origem romana de Gradiva, a que avança!
Coordenação do Projeto Gradiva
[1]Carla Cervera Sei é coordenadora clínica do Projeto Gradiva, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA. Graduada em filosofia pela PUC-SP, mestra em filosofia pela PUC-SP, especialização em clínica com ênfase em Psicanálise pela UFRGS e mestrado em Psicanálise – Clínica e Cultura pela UFRGS. Participou do projeto de extensão Casa dos Cata-ventos, estagiou na École Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne (França) e trabalhou como psicanalista atendendo crianças na Ocupação Mulheres Mirabal (POA-RS).
[2]Maria Rosane Pereira é coordenadora executiva do Projeto Gradiva, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre- APPOA, com formação em Paris pela AssociationLacanienne Internationale (Collège d’nseignementpourlespsychanalystesenformation). É autora de vários artigos publicados pela APPOA (Correio, Revista, Coletânea) e de quatro obras de ficção, entre as quais o romance recentemente lançado, “Mulheres esquecidas” pela editora Bestiário, em Porto Alegre-RS.
[3]Carla Costa Silvestrin é psicanalista. Formada em psicologia pela PUC-RS. Fez especialização no Instituto Lydia Coriat. Faz atendimento em sua clínica privada e é uma das coordenadoras do Projeto Gradiva.