Cinema

Da precarização do trabalho ao desgaste familiar: uma análise do filme “Você não estava aqui”

Cena do filme “Você não estava aqui” do diretor Ken Loach
Foto publicada em 01 de maio de 2019|Copyright Joss Barratt

No ano 2010, o sociólogo e filósofo sul-coreano, radicado na Alemanha, Byung-Chul Han publicou uma das suas obras mais conhecidas e contundentes intitulada Sociedade do cansaço. Han aprofunda um dos temas mais característicos da sociedade atual: o ativismo e a eterna busca sem objetivo. Sua reflexão parte do mito de Prometeu, o mais sábio e mais visionário dos titãs. Criou o homem a partir do barro, presenteou-o com as artes e as ciências – e pagou caro por isso (Revista Superinteressante, editora Abril, maio 2019). Sendo o mito inspirado como arquétipo da “sociedade do cansaço” – assim define a sociedade atual – para discutir os problemas atuais da humanidade, sobretudo a mudança de uma sociedade disciplinar (da negatividade, proibições, não-poder, dever) para uma sociedade da prestação (positividade, poder-fazer, empreendedorismo, Yes we can), com o ser humano passando de “sujeito de obediência” a “sujeito de prestação”, falsamente soberano de si mesmo, que não se submete a ninguém. Entretanto, a pressão da prestação gera esgotamento e diversas patologias psíquico-neuronais, com consequentes “enfartos psíquicos” e “esgotamento da alma”, como a depressão e a Síndrome de Burnout, que é o estresse crônico advindo do trabalho.

Segundo Dejours(1987, p. 127), autor que discutiu a psicodinâmica do trabalho e a intitulou de Clínica do Trabalho:

[…] a organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos e uma organização do trabalho que os ignora.” (DEJOURS, 1987, pg 127)

Quase uma década depois do lançamento da obra Sociedade do cansaço, o diretor inglês Ken Loach (2019) consegue ilustrar magnificamente a teoria de Han (2010), traduzindo-a em um filme forte e chocante, mas extremamente realista e atual. Sorry We Missed You (2019), ou “Você não estava aqui” na versão brasileira, em que fala exatamente da condição humana numa sociedade desumana, cansada e adoecida. O diretor demonstra, desde a primeira cena, o mecanismo perverso que se esconde por trás das relações contemporâneas de trabalho. Mas vai além, expõe toda a precariedade da sociedade atual: a “precarização” do trabalho, dos direitos, das relações, da família, da escola, da dignidade, da humanidade…

O diretor, que já superou os 80 anos e, portanto tem uma longa experiência de vida e de cinema, é conhecido por abordar temas sociais, especialmente ligados à classe pobre e trabalhadora do norte da Inglaterra. Seus personagens em geral são pessoas que querem apenas o que lhes é de direito: indivíduo que sofre com a burocracia, com os desmandos dos patrões, com a violência doméstica, com o preconceito, com as desigualdades sociais, etc. Em Você não estava aqui, Loach expõe as nódoas do sistema que os críticos chamaram de “uberização do trabalho”, colocando o público para testemunhar uma série de abusos mascarados de realização pessoal e modernização dos direitos trabalhistas. A “uberização” caracteriza os novos postos de trabalho sem vínculo empregatício que se aproveitam do crescente desemprego para explorar o sujeito. Aproveitando da fragilidade do trabalhador – em geral os desempregados em situação financeira precária –, prometem autonomia, liberdade e sucesso, mas escondem uma “escravização”, que o diretor em suas entrevistas prefere chamar de “novas e terríveis formas de exploração, consequências da economia de livre mercado”.

A “uberização” vende a falsa ideia (mito) do empreendedorismo que ao fim escraviza, porque esta forma de emprego (por exemplo as franquias de delivery, Uber etc.) exige jornadas longuíssimas, não permite descanso, não fornece garantias em caso de doença ou problema familiar e assim por diante. Dejours (2011) vai dizer que uma organização do trabalho autoritária, que não oferece uma saída apropriada à energia pulsional, conduz a um aumento da carga psíquica. É possível ver um alto nível de estresse vivenciado pelo personagem principal do filme, capaz de exemplificar muito  bem o conceito de psicopatogia do trabalho, também abordado pelo autor da Clinica do Trabalho:

[…]a psicopatologia do trabalho: o sofrimento está no centro da relação psíquica do homem com o trabalho. Não se trata de eliminar esse sofrimento da situação de trabalho nem tampouco eliminar o trabalho. Dentre outras diretrizes, a psicopatologia trata das conseqüências mentais do trabalho mesmo na ausência de doenças. Especificamente, trata do impacto da organização científica do trabalho sobre a saúde mental do trabalhador. (DEJOURS, 1986, pg.39).

Personagem Ricky, interpretado pelo ator Kris Hitchen
Foto publicada em 01 de maio de 2019|Copyright Joss Barrat

No filme é marcante a cena em que o empregador de Ricky (Kris Hitchen, 2019) “explica” que a partir daquele momento ele não trabalha “para uma” empresa, mas “com” a empresa. Não seria um “funcionário”, mas um “sócio/colaborador”, um empreendedor, com carro próprio e tudo mais. Aos poucos, porém o espetáculo da injustiça social entra em cena e Ricky se torna escravo deste sistema que prometia êxito e liberdade, mas que na prática, num dia de falta ao trabalho por problemas pessoais ou familiares, além de não receber deve pagar uma multa e indenizar as perdas da empresa.

O diretor não questiona o valor e a importância atribuída ao trabalho na emancipação humana, ou a noção de que o trabalho engrandece o ser humano, é um direito e um valor moral etc. Mas, sim, revela a falta de humanidade de uma sociedade “cansada”, na qual os personagens não vivem verdadeiramente, mas apensas sobrevivem: trabalhadores em conflitos e esgotamento, idosas que moram só e são cuidadas por uma desconhecida, ladrões que roubam um pobre e simples mensageiro, hospitais lotados, adolescentes que procuram romper a monotonia com pequenos desacatos…

O filme revela sobretudo que a submissão ao sistema está na fonte de conflitos especialmente familiares, com a esposa e o filho. Provoca o espectador a refletir sobre o desgaste e a ruína das relações familiares, que ao final são os únicos sustentos e pontos firmes de uma pessoa. O próprio título é uma exortação neste sentido: Você não estava aqui (ou We missed you) é o texto das notas deixadas com os produtos entregues nas casas mesmo onde não há receptores, mas evoca a constante “ausência” dos protagonistas, sobretudo no âmbito familiar. Serve de metáfora à condição familiar de Ricky e de todos os trabalhadores do sistema atual que mede o ser humano pela sua capacidade de produção e não por seus valores humanos.

O valor na sociedade atual não é o ser humano, mas o capital, o produto. O único resquício de humanidade vem da filha caçula, que busca em diversos momentos reacender a chama da vida e da felicidade. Ela se torna simbolicamente o pilar de sustentação da família, e serve para mostrar que no fim o único ponto seguro, certo, inquestionável é a família. O diálogo do policial com o filho adolescente de Ricky reforça essa centralidade e importância dos laços familiares como resistência diante do sistema. A família se torna assim um referencial e possível antídoto à sociedade do cansaço. Abby e Ricky são um casal apaixonado e companheiro que tenta educar os filhos em meio às dificuldades econômicas. Ambos se esforçam para ser bons pais, mas trabalham tanto que, muitas vezes, só conseguem manter contato superficial, “virtual”: Abby está sempre em movimento (em ônibus público) e se comunica sobretudo por telefone.

Cena do filme “Você não estava aqui”, Ricky (Kris Hitchen) e sua filha Liza (Katie Proctor)
 Foto publicada em 01 de maio de 2019|Copyright Joss Barratt

Ken Loach vai além e procura expor a destruição do sentido de comunidade, de laços humano. De fato, em todo o filme não se vê outro evento social que não seja o trabalho, o “ativismo sem sentido” como denuncia Byung-Chul Han no seu livro. Para o diretor, os únicos laços que se mantém, com muita dificuldade, são os familiares. Mas a imersão no sistema é tão forte que o protagonista não consegue se desprender de estereótipos como o “compromisso” no sustento da família. Apesar de esta querer ajudar a encontrar soluções alternativas, o orgulho e a busca por dignidade, condicionado pela “sociedade do cansaço”, não permite a Ricky mudar.

O final é intenso, pessimista mas realístico. Se por um lado é impossível não se indignar com o sistema que destitui o trabalhador de todos os seus direitos e corrói suas relações familiares, por outro temos de reconhecer que ainda não encontramos o remédio para curar este sistema pobre e enfermo, evidenciado superlativamente durante este tempo de pandemia.

Amanda da Silva e Sandra Zambon, estudantes de Psicologia e estagiárias do NPOT 2020/1

DEJOURS, C. (1987) . A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho. São Paulo: Cortez.

BETIOL S. I. M. (1994). Psicodinâmica do Trabalho – Contribuições da Escola Dejouriana à Análise da Relação Prazer, Sofrimento e Trabalho. São Paulo: Atlas.

HAN, BYUNG-CHUL. (2017)  Sociedade do Cansaço . Rio de Janeiro: VOZES.

Revista Superinteressante, editora Abril, maio 2019

6 thoughts on “Da precarização do trabalho ao desgaste familiar: uma análise do filme “Você não estava aqui”

  1. Parabéns, colegas queridas!! Texto maravilhoso e bem articulado!

  2. De vocês duas não poderia esperar menos. Parabéns! Muito bem articulado com muitas relações de trabalho contemporâneas, embora, há de se entender que, as relações de trabalho têm mudado, mas penso que a reflexão a ser feita é exatamente esta: quais os reflexos dessas mudanças? na famîlia, no social, na saúde do trabalhador, quais consequencias essas mudanças trazem consigo? A quem interesssam? A quem são favoráveis? Quem está preocupado com a parte mais frágil? Muita coisa a se pensar … Parabéns novamente.

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