Psicologia Organizacional e do Trabalho: uma experiência de estágio no NPOT em instituições educacionais da rede pública
O estágio curricular obrigatório do curso de Psicologia da Faculdade São Francisco de Assis tem como objetivo geral articular a formação teórica e a formação do profissional por meio de prestação de serviços psicológicos e, atendendo a este objetivo, o Núcleo de Práticas em Psicologia Organizacional e do Trabalho (NPOT), vinculado ao Serviço de Psicologia, permite a experimentação de diversos tipos de dispositivos, tais como grupos de escuta e rodas de conversa, realizados pelos estagiários em diferentes ambientes institucionais, dentre eles, no campo educacional.
Uma destas práticas foi realizada com adolescentes do ensino fundamental e médio de escolas públicas de Porto Alegre/RS, com turmas de 8º e 9º ano, com idades entre 13 e 17 anos, no período de 2018 e primeiro semestre de 2019. Os encontros foram quinzenais, com duração de aproximadamente uma hora, na própria instituição de ensino. O dispositivo de intervenção utilizado foi a roda de conversa, aplicando-se como referencial teórico metodológico a Psicodinâmica do Trabalho e a Psicanálise.
O Projeto “Adolescer e sonhar: narrativas de um futuro” teve como finalidade a construção de narrativas, através do diálogo grupal, sobre os sentidos do trabalho, as perspectivas e os impasses relacionados ao campo profissional para estes jovens que estão inseridos em situação social crítica. Importante destacar que estas narrativas foram permeadas pelas questões psíquicas e emocionais próprias da(s) adolescência(s).
As rodas de conversa possibilitaram uma abertura discursiva, fazendo emergir os sonhos ou a ausência deles na vida destes jovens; questionamentos sobre as suas escolhas futuras em relação à profissão: o lugar que cada um almeja encontrar no laço social. Nestes momentos, a problemática da construção identitária esteve fortemente presente, corroborando a intrínseca relação entre trabalho e identidade.
No primeiro encontro, com aproximadamente 15 adolescentes, observou-se um silêncio “barulhento” como principal emergente do grupo. Destaca-se que o silêncio também comunica.
Sublinha-se com Fachinetto (2012) a proposta de Lacan sobre o silêncio, em que há uma dupla alternativa, isto é, uma sendo pela via do pavor e a outra pela via do desejo. Na via do pavor, o sujeito permanece narcisicamente enclausurado e, por este motivo, há uma recusa em dirigir a palavra ao outro. O silêncio necessário está na via do desejo, quando é preciso mais tempo para amadurecer uma dada elaboração que ainda não foi possível, devido à falta dos instrumentos necessários. O silêncio é o que provoca um confronto com a falta e possibilita a circulação dos modos de ser e de existir do sujeito, assinala Fachinetto (2012).
No decorrer dos encontros com os adolescentes, o processo de transferência foi sendo instalado, fazendo com que a resistência e o silêncio fossem diminuindo, dando espaço para a circulação da palavra. Santos (1994), fundamentado nos ensinamentos de Freud, diz que a transferência pode emergir como uma exigência intensa de amor, de atenção, de reconhecimento ou sob as formas mais moderadas: desejo de ser recebido como filho(a) predileto(a), de ser alvo de uma estreita amizade (necessidade libidinal sublimada), etc.
Foi observado no discurso dos adolescentes a existência de sentimentos e emoções como angústia, raiva, medo, insegurança, solidão, menos valia e desamparo. Tais sentimentos apareceram intimamente relacionados à ausência de perspectivas para o futuro, algo que deve ser escutado e trabalhado pelas diversas instâncias sociais. A partir desta compreensão, o trabalho do projeto Adolescer buscou que os jovens expressassem estes conteúdos através de atividades lúdicas, como a criação de estórias e de desenhos, sendo que após a realização dos desenhos, eles foram convidados à construção discursiva sobre as suas produções gráficas e estas deveriam ter início, meio e fim. Esta atividade despertou no grupo um desejo de expressar os seus sonhos, ideais, queixas, tristezas e frustrações, o que permitiu uma certa elaboração simbólica, com a abertura de novos sentidos.
No decorrer do trabalho grupal, foram observados a utilização de mecanismos de defesa, como inibição, isolamento, negação, formação reativa e racionalização. A presença da pulsão de morte pode ser observada nos desenhos apresentados e nas estórias trazidas, uma vez que as representações traziam situações trágicas, com finais autodestrutivos, observando-se o intuito de suprimir uma tensão interna e uma vontade de voltar a um estado de inércia, visando, aparentemente, diminuir a dor e o sofrimento psíquico.
As principais queixas dos adolescentes na roda de conversa foram relacionadas ao convívio familiar ou a falta deste, assim como à escassez de estímulo em relação a uma visão de futuro. Prevalece nos adolescentes um sentimento de menos valia e invisibilidade, onde se sentem excluídos e com a ideia da impossibilidade de inserção como sujeitos cidadãos.
Decorrente deste quadro, a agressividade apareceu como um elemento importante nas expressões da linguagem, pensamentos e ideias, bem como nos gestos impetuosos e no contato físico com os colegas. Para Souza (2004), a agressividade aponta um caráter intencional, onde o indivíduo procura obter algo, coagir outrem, demonstrar poder e domínio. Ela se torna essencial na sobrevivência, no desenvolvimento, na defesa e na adaptação dos indivíduos. Então, ficou evidenciado que a agressividade é uma forma de defesa diante das múltiplas impossibilidades vivenciadas pelos jovens, da impotência que se veem em relação ao futuro.
Com esta prática de estágio, em que foi realizada uma escuta atenta, pode ser observado que, embora existam diversos empecilhos, todo o sujeito é detentor de fraquezas e forças, sendo que advir destas tem na via da palavra um modo privilegiado de expressão.
Neste sentido, Freud (1996 [1905], pg. 283) ensina que:
(…) as palavras são o mediador mais importante da influência que um homem pretende exercer sobre o outro; as palavras são um bom meio de provocar modificações anímicas [psíquicas] naquele a quem são dirigidas, e por isso não soa enigmático afirmar que a magia das palavras pode eliminar os sintomas patológicos, sobretudo aqueles que se baseiam justamente nos estados psíquicos.
Broide e Katz (2019) dizem que o trabalho psicanalítico nas situações sociais críticas convoca a responsabilidade de agir frente ao mal-estar na cultura. Quando nos encontramos diante deste desamparo psíquico e social e dos interrogantes que colocam desafios, precisamos desacomodar o pensamento teórico e à práxis psicanalítica. E ainda que, diante de situações sociais críticas, coloca-se em relevo o inconsciente onde a vida humana precária e dramática se apresenta e clama pela economia do pensamento e pelo ensurdecimento dos ouvidos frente ao drama singular do sujeito em situação de vulnerabilidade.
Tendo em vista a repetição da ideia de abandono familiar e social apresentada pelos adolescentes nos grupos escutados, torna-se importante pensarmos sobre a importância das “ancoragens”, descritas por Broide e Katz (2019). As autoras dizem que as “ancoragens” não são necessariamente a família, mas os diversos fios que ligam o sujeito à vida, os laços que são determinantes em sua existência. É nestes que estão o desejo e a possibilidade de sobrevivência.
Apesar das várias barreiras de ordem psicossocial trazidas pelo grupo, em relação às possibilidades de sucesso profissional futuro, foi observada a existência da capacidade de resiliência. A resiliência pode ser vista como um conjunto de sistemas intrapsíquicos que possibilitam ao indivíduo ter uma vida saudável, num meio ambiente difícil, o que evidencia as capacidades individuais, constituindo desta forma, uma característica individual e pessoal de cada ser humano. É uma capacidade que não é inata, mas que no percurso de vida se consegue construir e integrar, progressivamente, como forma de autocorreção que pode ser colocada em prática quando o ser humano é confrontado com situações adversas, nefastas e negativas (CAVACO, 2010).
O projeto “Adolescer e sonhar: narrativas de um futuro”, propiciou ao grupo de adolescentes a possibilidade de atribuir sentidos a algumas das suas dores e sofrimentos, uma vez que encontraram um lugar de acolhimento e puderam falar de suas vivências, que são repletas de desafios. Talvez a abertura de novas significações relacionadas ao trabalho possa auxilia-los a lidar melhor com tantas adversidades presentes no laço social.
REFERÊNCIAS:
BROIDE, Emília, KATZ, Ilana (organização). Psicanálise nos espaços públicos. 2019. Disponível em http://newpsi.bvspsi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf. Acesso em 25/10/2019.
CAHN, Raymond. O adolescente na Psicanálise: a aventura da subjetivação. Editora: Companhia de Freud. Tradução de Sandra Regina Felgueiras. 1999.
CAVACO, Nora Alejandra Pires Almeida. Atitudes educativas parentais e resiliência no adolescente. 2010. Disponível em https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0563.pdf. Acesso em 20/10/2019
FACHINETTO, Lisiane. Transferência em orientação: efeitos de intervenção em textos acadêmicos. 2012. Disponível em https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-12062012-145715/publico/LISIANE_FACHINETTO.pdf. Acesso em 03/11/2019.
FREUD, Sigmund. Edição Standard das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud Volume VII: Um caso de Histeria, Três Ensaios sobre a Sexualidade e outros Trabalhos (1901-1905). Ebook Kindle. Imago Editora. 1996.
SANTOS, Manoel Antonio. A transferência na clínica psicanalítica: a abordagem freudiana. 1994. Universidade de SP. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1994000200003
SOUZA, Pedro Miguel Lopes. Agressividade em contexto escolar. 2004. Disponível em https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0261.pdf. Acesso em 25/10/2019.
Muito bom ler teu relato, Margela, parabéns pelo trabalho a ti, tua orientadora e equipe do NPOT!