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A invisibilidade do trabalho de revisão de textos acadêmicos: entre as abordagens dialógica e ergológica

Vanessa Fonseca Barbosa
Pesquisadora de Pós-Doutorado (PNPD) na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação/supervisão da Professora Dra. Sheila Vieira de Camargo Grillo. Doutora em Letras (na área de concentração em Linguística) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Letras (na área de concentração em Linguística Aplicada) pela Universidade Católica de Pelotas (Fev/2012). Foto retirada do arquivo pessoal da autora. 2019.

A invisibilidade da atividade de revisão de textos acadêmicos: entre as abordagens dialógica e ergológica

Esta entrevista discute a complexidade do trabalho de profissionais que realizam a revisão de textos acadêmicos, utilizando por base epistemológica a abordagem ergológica do trabalho e a teoria de Bakhtin para tratar da linguagem em um viés discursivo. De acordo com a cientista da linguagem Vanessa Fonseca Barbosa, o trabalho do revisor de textos envolve, entre outros elementos, um navegar constante por diferentes perspectivas ideológicas e a negociação de significados com o autor da escrita revisada. A linguagem, nesse prisma, é considerada um dispositivo revelador da complexidade do trabalho e, com base em pressupostos ergológicos, é analisada em três dimensões intimamente relacionadas: como trabalho, no trabalho e sobre o trabalho (NOURODINE, 2002). O revisor, de acordo com a tese da pesquisadora, ocupa um espaço fronteiriço entre o autor e o leitor presumido da produção textual revisada (BARBOSA, 2017).

Shutterstock. 2016

Foi uma conversa por videoconferência que suscitou as perguntas dessa entrevista, as quais foram gentilmente respondidas à equipe do NPOT pela cientista e, agora, são compartilhadas com todos os leitores do blog. As questões que seguem tentam responder como a abordagem ergológica do trabalho pode auxiliar a reconfigurar nossa relação com os saberes acadêmicos.

Quais são os desafios enfrentados pelos revisores de textos acadêmicos?

Os desafios são diversos e de múltipla ordem. Eles abarcam, por exemplo, desde a necessidade de pesquisar constantemente e aprender a navegar por diferentes áreas do conhecimento e suas múltiplas perspectivas ideológicas até o fato de saber negociar os sentidos possíveis com o autor da escrita, afinal, a palavra final é sempre dele (e assim deve ser, na minha opinião). Há também complexidade da linguagem utilizada nos textos acadêmicos, a tensão entre a necessidade de atender aos curtos prazos nesse âmbito e a dedicação e qualificação necessária do profissional para realizar uma boa revisão textual, sem contar a busca pela manutenção da ideia geral de unidade no texto, mesmo diante da diversidade de vozes que lhe são presentes. Além disso, conforme defendi na minha tese, o revisor ocupa um espaço fronteiriço entre o autor e o leitor presumido da produção textual revisada, pois ninguém escreve, a princípio, para um revisor, mas, uma vez presente no texto, ele passa a desempenhar um espaço fundamental, o que exige, em consequência, o estabelecimento de uma relação colaborativa entre o profissional e o autor da escrita com vistas a alcançar o objetivo proposto pelo trabalho. A atividade de revisão de textos é, portanto, um fazer complexo e múltiplo, que exige do revisor, tomado em abordagem ergológica, arbitragens e debates de valores, normas e renormalizações constantes para dar conta dos inúmeros desafios impostos na dinamicidade da atividade.

Congresso de linguística, PUC-RS, 2019. Arquivo pessoal.

Afinal que trabalho é este que, embora tenha o incentivo da comunidade acadêmica, não tem a exigência de registro em trabalhos acadêmicos como TCCs, dissertações, teses e artigos? 

Conforme eu destaco nos meus trabalhos, é muito comum o reconhecimento de leitores e avaliadores de trabalhos acadêmicos de que um texto que passa pelo trabalho do revisor tem sua qualidade potencializada. Isso é fato! Contudo, eu também chamo a atenção para o fato de que não há um espaço em gêneros acadêmicos (como teses, dissertações e artigos) que registre e legitime o trabalho do profissional que fez a revisão naquele texto. No máximo, nós, revisores, aparecemos nos agradecimentos, mas sem uma menção que seja suficiente para documentar/oficializar o fazer desenvolvido, percebem? Essas foram algumas das questões que me provocaram, durante a elaboração da minha tese, e que trago para os meus trabalhos, pois parto do pressuposto de que a atividade do revisor de textos acadêmicos é fundamental para a qualificação da versão final do texto apresentado, já que o profissional ocupa esse olhar exotópico (nas palavras de Bakhtin), distanciado, uma posição que é em essência diferente da ocupada pelo autor do trabalho em si. Isso permite ao revisor indicar problemas importantes a serem resolvidos na escrita e me faz questionar a complexidade desse profissional no que tange ao silenciamento e à invisibilidade que constituem a atividade de revisão textual.

FTCDN. 2023

Além do silenciamento e da invisibilidade, quais são as demandas enfrentadas pelo revisor?

Uma das principais demandas, a meu ver, é, inicialmente, deixar claro ao contratante da revisão de textos como você trabalha, pois há distintos modos de compreender e de desempenhar a revisão em um texto. Essa variação nas maneiras de realizá-lo pode abarcar desde a verificação exclusiva de questões gramaticais, por alguns revisores, até a intervenção discursiva, por outros. Nesse sentido, defendo que a Ergologia é uma abordagem fundamental para tratar do trabalho do revisor, pois ela o permite compreender a complexidade envolta em todo o fazer humano e, no caso do revisor, permite-lhe recuperar as normas antecedentes desse fazer, a fim de explicar ao autor do texto de que lugar o profissional fala, isto é, de que modo ele renormaliza o trabalho em sua atividade prática.

Se tais perspectivas não se afinam com o trabalho de revisão, que outra(s) perspectiva(s) os revisores de teses adotam? 

Como não há muitos espaços profissionais institucionalizados para o exercício desse trabalho (para além de poucas equipes contratadas por editoras), o mais comum é que os revisores de textos acadêmicos exerçam seu trabalho de modo bastante isolado, individualmente, de maneira bastante diversificada e com quase nenhum reconhecimento do mercado em que atuam. Algumas pessoas, inclusive, dependendo da área do conhecimento em que se situam, sentem vergonha de expor que seu texto passou pelo processo de revisão, sobretudo e, ironicamente, se são profissionais da área da linguagem.

Em que medida a perspectiva ergológica e os pressupostos bakhtinianos dialogam com a necessidade de compreender as práticas do revisor textual?

Para mim, a Ergologia e a perspectiva dialógica/discursiva da linguagem permitem uma compreensão muito mais abrangente e coerente da pluralidade de elementos envolta no desenvolvimento da revisão de textos, afinal, elas possibilitam articular questões referentes à atividade de trabalho e à atividade de linguagem. Ambas as abordagens estão voltadas para a compreensão da atividade humana em situações concretas e complexas, considerando também a inter-relação teórica proposta. A ergologia busca estudar a atividade humana de trabalho em sua complexidade, enquanto a perspectiva bakhtiniana considera a intrínseca relação da produção dos enunciados/do discurso com a sua situação extraverbal, sem desconsiderar a importância da ideologia e dos acentos de valor que os signos recebem nos textos. Dessa forma, a perspectiva ergológica e os pressupostos bakhtinianos contribuem para uma compreensão mais ampla e profunda do trabalho do revisor de textos acadêmicos, permitindo uma análise mais crítica e reflexiva sobre as práticas cotidianas desse profissional.

Arquivo pessoal da autora. 2019

Como você se sente pesquisando um trabalho que ainda hoje é tão invisível?

Olha, considerando o fato de que pesquiso a revisão de textos a partir de duas grandes linhas das Ciências Humanas (Linguagem/Discurso e Ergologia), posso resumir essa questão, dizendo a vocês que prefiro falar em sentimentos com relação a pesquisar o trabalho do revisor de textos. Sentimentos que são, tal como a atividade, múltiplos e complexos, pois vão desde uma enorme satisfação pela oportunidade de tratar desse fazer tão relevante, pensando-o cientificamente, até sensações de frustrações, muitas vezes, pelo desconhecimento e pela quantidade de preconceitos e mitos que envolvem a imagem geral de um revisor de textos e de seu trabalho. 

Existe alternativa para tornar o trabalho do revisor mais respeitado socialmente?

Uma das alternativas, na minha opinião, é o fazer científico/acadêmico de reflexão e, também, de divulgação desse trabalho, tal como procuro, humildemente, realizar desde o meu mestrado. Ir a eventos, conversar com os pares, ministrar e fazer cursos nessa área também são oportunidades de compartilhar com os colegas e de fortalecer o trabalho.

Equipe NPOT 2023/1

Autores:

Ana Charão. Estagiária do NPOT. 2023/1

Gabino Moraes. Estagiário do NPOT. 2023/1

Supervisora: Profa Dra. Márcia Aparecida Vitorello

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